1930 - o começo do que não tem fim


Seleção brasileira na primeira partida da Copa de 1930. Em pé: Píndaro de Carvalho (Técnico), Brilhante, Fausto, Hermógenes, Itália, Joel e Fernando. Ajoelhados: Poly, Nilo, Araken, Preguinho e Teóphilo.

Existe um ditado chinês que diz: “as mais altas torres se erguem do chão”. Frase interessante e cheia de significados: traz em si a ideia de que os grandes projetos demandam tempo, as maiores conquistas são fruto de esforço infatigável e que eventuais tropeços são pedras úteis para reforçar as fundações de nossos projetos de vida. Aplicando essa singela sabedoria oriental na história das Copas do Mundo, podemos dizer que a seleção brasileira é a mais alta de todas as torres construídas pelo torneio – afinal, já conquistamos cinco taças, disputamos decisões outras duas vezes, e algumas de nossas participações, mesmo sem levantar caneco, entraram para a história. E a nossa torre, no caso, também foi erguida do chão – mais precisamente, de participações pouco empolgantes e/ou fracassos dolorosos nas primeiras disputas pela taça. Com direito inclusive a derrota na estreia em Copas, contra a Iugoslávia, no já muito distante ano de 1930.

Em sua primeira edição, a Copa do Mundo era uma experiência com gosto de aventura. Várias das maiores seleções do mundo à época -- como Itália, Espanha, Portugal e Alemanha -- declinaram de participar devido aos altos custos e ao longo período de deslocamento (de navio) para chegar ao país-sede Uruguai. Outras nações fizeram grandes sacrifícios para participar – conta-se que a Romênia só jogou a Copa porque o rei Karol II interveio pessoalmente, bancando financeiramente a expedição e garantindo junto aos patrões dos atletas que ninguém perderia o emprego por causa da viagem. O Brasil encarou esse desafio todo, mas sofreu com mais de cinco dias de viagem, o que somado ao trabalho ainda rudimentar de preparação física resultou em grande desgaste físico antes da estreia.

Além disso, outro problema fragilizou a seleção pioneira – desta feita, político. A Confederação Brasileira de Desportos (CBD), sediada na então capital Rio de Janeiro, recusou-se a integrar profissionais da Associação Paulista de Esportes Atléticos (Apea) na delegação que iria para o Uruguai. A implicância, motivada pela rivalidade política entre Rio e São Paulo, recebeu uma resposta dura dos paulistas. Como represália à afronta carioca, a Apea proibiu clubes paulistas de cederem jogadores para a seleção
– o que privou a equipe de vários dos maiores craques da época, como Del Debbio, Feitiço, Jaú e o lendário Friedenreich.

Com isso, a seleção brasileira (que já seria, na prática, um selecionado RJ-SP) contou com um único jogador paulista – Araken, ou Abraham Patusca da Silveira para os não-íntimos. Integrante da que hoje é considerada a primeira grande fase do Santos, entrou para a história em 1927, como craque do então chamado “ataque dos cem gols”. A participação do atacante na Copa é no mínimo curiosa: brigado com a direção santista na época, Araken literalmente convidou-se para viajar, indo até o porto de Santos e aproveitando uma pausa na viagem para embarcar no navio rumo a Montevidéu. Na volta, sem clima para seguir na Vila Be
lmiro, assinaria com o São Paulo, onde foi campeão estadual em 1931.

Além de Araken, e apesar das ausências provocadas pelo racha entre Apea e CBD, o grupo brasileiro tinha outros jogadores de grande destaque na época. Entre eles, podemos começar citando Oscarino e Manoelzinho, considerados os maiores craque da história do Ypiranga de Niterói (RJ). Na época, os dois eram campeões estaduais pela Associação Nictheroyense – vale frisar que, naqueles tempos, o campeonato carioca era disputado por seleções citadinas e não por clubes propriamente ditos. O zagueiro Itália (do Vasco), o meia Fernando Giudicelli (Fluminense) e Moderato, gaúcho de
Alegrete e então atacante do Flamengo, eram nomes considerados igualmente fortes naquele elenco pioneiro.

João Coelho Neto, o Prego (que mais tarde desceu na hierarquia dos apelidos e virou Preguinho) era talvez o maior destaque individual daquele time. Além de famoso pela sua capacidade de marcar gols, a relação de amor do atacante com o Fluminense entrou para a história. Sua família foi uma das fundadoras do clube, e diz-se que virou sócio antes mesmo de ser batizado, detentor que era da inscrição nº 20 do quadro social do Pó de Arroz. Defendeu o Fluminense em nada menos que oito esportes diferentes, e conquistou para o tricolor carioca impressionantes 55 títulos (!) e 387 medalhas (!!!) durante sua carreira. E tudo isso sem cobrar um tostão: apaixonado pelo Fluminense, Preguinho manteve-se amador mesmo quando o profissionalismo chegou ao futebol, defendendo as cores do clube de 1925 a 1938. Convenhamos, não é à toa que virou benemérito e hoje em dia dá nome ao ginásio que fica ao lado do Estádio d
as Laranjeiras.

Para comandar esse plantel fragilizado pelas ausências, mas ainda assim dotado de bons nomes, a CBD indicou o ex-jogador Píndaro de Carvalho Rodrigues. Entre outros feitos, o então defensor participou do primeiríssimo jogo de futebol da história do Clube de Regatas Flamengo – a saber, uma estrondosa goleada de 16 a 2 sobre o pobre-diabo Mangueira, ocorrida no dia 3 de maio de 1912. Defendeu o clube por dez anos, disputando mais de oitenta partidas e marcando três gols em sua carreira. Vestiu também a camisa canarinho (então branca como a virtude, mas enfim) em oito oportunidades, inclusive conquistando a Copa América de 1919. Píndaro tinha, portanto, uma história respeitável dentro do futebol – que talvez não tenha sido suficiente para arrumar a bagunça daquela primeira participação em Copas, mas que justificava plenamente a escolha dele para tão importante posto. Vale citar, porém, que Píndaro chegou em Montevideo depois dos seus atletas, vários deles vindo a conhecer seu comandante já em solo uruguaio...

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mos, então, ao Uruguai e à Copa que deu início a todas as Copas. O Brasil era cabeça de chave no Grupo 2, onde jogariam também Iugoslávia e Bolívia, classificando-se apenas o campeão para a fase semifinal. A disputa, como de praxe posteriormente, era em turno único, e cada seleção teria apenas duas partidas para definir o seu destino. Mesmo com todos os problemas, os brasileiros eram dados como favoritos – muito devido ao desempenho recente do time, com várias vitórias em amistosos contra equipes internacionais como Ferencvaros (HUN) e Rampla Juniors (URU). Confiantes, apesar de tudo, num bom resultado, a equipe brasileira entrou em campo para encarar a Iugoslávia, às 12h45 do dia 14 de julho de 1930, com Joel; Brilhante e Itália; Hermógenes, Fausto e Fernando Giudicelli; Poly, Araken, Prego, Nilo e Teóphilo.

A grande estreia brasileira em Copas, no entanto, foi decepcionante. Já aos 21mins de jogo, o atacante Aleksandar Tirnanić, na época com meros 19 anos de idade, fez o primeiro gol dos iugoslavos, para surpresa dos cerca de cinco mil torcedores presentes ao Parque Central de Montevideo. Oito minutos depois, Yvan Beck (que, vejam só, defenderia a seleção da França cinco anos depois) marcou o segundo. Sem o melhor preparo físico, os atletas brasileiros tiveram dificuldades para buscar uma reação – somente aos 17mins do segundo tempo o prejuízo seria diminuído, com nosso amigo Prego acertando um “placed shot” (abraço, FM). Foi nosso primeiro gol em Copas do Mundo – pena que a história se escreveu em tristes circunstâncias, com a derrota de 2 a 1 para os iugoslavos e a classificação para as semifinais transformada num sonho praticamente inalcançável. Uma derrota que, paradoxalmente, gerou muita festa no Brasil – mais especificamente em São Paulo, onde houve aglomeração em frente a sedes de jornais para comemorar o fracasso dos “cariocas”.

Como a Iugoslávia enfrentaria a Bolívia três dias depois, e como até então os bolivianos jamais haviam vencido nenhuma partida em sua história, a chance do Brasil entrar em campo já eliminado era bastante alta. E assim foi: apesar da bravura boliviana, segurando um empate até o começo do segundo tempo, os iugoslavos abriram a porteira e acabaram patrolando os adversários com um categórico 4 a 0. Restava aos brasileiros, portanto, jogar pela honra a partida derradeira contra os bolivianos. Com a equipe bastante modificada em relação a da estreia, nossa seleção conquistou sua primeira vitória em Mundiais, com um 4 a 0 honrado e cheio de brio. Além de Prego, que marcou dois gols e somou-os ao tento inaugural para ser nosso artilheiro naquela Copa, os destaques vão para o alegretense Moderato, autor dos outros dois tentos do jogo, para Fausto (que jogou tão bem na Copa que ganhou a alcunha "Maravilha Negra" e acabou contratado pelo Barcelona) e para Velloso, que substituiu Joel debaixo das traves e defendeu um pênalti quando a partida ainda estava no zero a zero.


Uma vitória que, se não serviu para nada em termos de classificação, mostrou qual seria a nossa tendência em Mundiais, sendo o primeiro de sessenta e sete triunfos em dezenove edições do torneio. E que emprestou dignidade a uma participação pioneira e a um grupo de atletas idem. Mesmo fragilizado e privado de vários craques por conta de picuinhas que hoje soam ridículas, o Brasil fez o melhor que pôde, dadas as circunstâncias. E é como foi dito no início: toda torre começa do chão, e toda a história tem um primeiro capítulo. Esse foi o nosso – talvez não tão glorioso quanto outros que se seguiriam, mas ainda assim um belo capítulo. Corajoso, cheio de desafios e apontando para o futuro.

Fotos: seleção brasileira de 1930 (Esquadrões de Futebol); Araken Patusca e seu bigodinho (Site do Santos FC); o multiatleta Prego, ou Preguinho (Wikipedia); e um lance da estreia brasileira contra a Iugoslávia (Arquivo - Folha Online).
Link para a matéria original (blog Carta Na Manga): http://cartanamanga.blogspot.com/2010/01/1930-o-comeco-do-que-nao-tem-fim.html

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