1934 - férias frustradas na Europa


Delegação brasileira para a Copa de 1934. De pé: Pedrosa, Martim, Armandinho, Tinoco, Patesko, Luizinho, Luis Luz e Leônidas da Silva. Agachados: Atila, Sylvio Hoffmann, Waldemar de Brito, Canalli, Germano, Carvalho Leite, Octacílio e Waldir.

Sabe aquelas vezes que a gente sai de casa com tudo certinho, ensaiado para dar certo, e os planos mudam de repente? Quando, sei lá, você vai para a noite com aquela sensação de “agora vai”, rola algum desencontro, as coisas saem do controle e você acaba fazendo aquele programa bem meia-boca só para não perder a viagem? Pois é, todos nós já passamos por isso algumas vezes em nossas vidas. E a seleção brasileira passou por isso em 1934 – uma Copa na qual planejou grandes coisas, investiu um monte de dinheiro, encarou uma tremenda maratona até a Itália, jogou um único jogo e teve que marcar uns amistosos a toque de caixa para não sair tão no prejuízo assim.


A Copa de 1934 foi a primeira a contar com uma fase classificatória anterior ao Mundial propriamente dito, já que a quantidade de interessados (32 ao todo) superou as 16 vagas previstas para a competição. No entanto, o Brasil não precisou se preocupar com isso: seu adversário no melhor-de-três, o Peru, declinou da disputa e o Brasil ganhou, de mão beijada, a vaga para a Copa da Itália. Por um lado talvez fosse um problema, já que a seleção não teria a chance de fazer jogos realmente competitivos já no clima de uma Copa do Mundo; por outro, era a chance ideal para um planejamento em médio prazo, a oportunidade de conciliar interesses em nome de uma participação mais duradoura do que os meros dois jogos de 1930, no Uruguai.


Mas conciliação, definitivamente, não era o forte brasileiro naqueles anos iniciais em Copas do Mundo. Depois das confusões de 1930, quando a rixa entre paulistas e cariocas fragilizou a seleção e prejudicou a campanha, era de se esperar algum tipo de evolução nesse sentido, mas nada feito: as brigas e politicagens continuaram, em detrimento da campanha brasileira.


A CBD, entidade à época responsável pela seleção e sediada no Rio de Janeiro, tinha como princípio a manutenção do futebol como um esporte amador. Ideia contrária ao modelo profissional de gestão, representado pela Federação Brasileira de Futebol (FBF) e que já contava com a adesão de todos os grandes clubes de São Paulo, além dos cariocas Flamengo, Fluminense e Vasco da Gama. Único grande clube ainda filiado à Confederação Brasileira de Desportos, o Botafogo acabou servindo de base para a seleção brasileira, já que a FIFA não reconhecia a FBF e a CBD estava legalmente impedida de convocar atletas que não estivessem ligados a ela.

Para tentar driblar essa situação, a CBD apostou num argumento na verdade pouco amador, mas muito convincente: passou a oferecer grandes valores em dinheiro para alguns jogadores, tentando transformá-los em filiados da Confederação e assim garanti-los na Copa. Medida que, como se pode imaginar, não agradou muito a FBF, que via o imbróglio como a chance de enfraquecer a CBD e assim forçar definitivamente o profissionalismo no futebol brasileiro. Reza a lenda que clubes como o Palestra Itália, a pedido da Federação, chegaram a isolar seus atletas em fazendas e casas de praia, cercando as propriedades de guardas armados para que ninguém entrasse e ninguém saísse. Difícil saber o quanto de verdade há nessa história, mas já dá para sentir o clima.


A medida da CBD era meio desesperada (além de financeiramente desgastante), mas acabou tendo razoável sucesso, garantindo a presença de grandes nomes que, sem esse persuasivo argumento, provavelmente não teriam participado da Copa. Entre outros, foram assim confirmados Leônidas da Silva (o lendário “Diamante Negro”, então no Vasco), Luiz Luz (gaúcho que na época defendia o poderoso Peñarol do Uruguai), o zagueiro Sylvio Hoffmann, o meia Luizinho e o atacante Waldemar de Brito – os três últimos atletas do São Paulo da Floresta, encarnação anterior do São Paulo que hoje conhecemos. Outros atletas, porém, não cederam à manobra – entre eles, nomes como Domingos da Guia, Tunga e Ladislau. Lourival Fontes, homem forte do governo Getúlio e depois designado chefe da delegação brasileira, chegou a apelar ao sentimento nacionalista dos jogadores mais reticentes, mas a patriotada não surtiu efeito e os jogadores acabaram não atendendo à convocação.


Não pense, caro leitor/a, que os constrangimentos acabam por aí. Para o cargo de treinador do selecionado brasileiro foi escalado Luís Vinhaes, que era considerado um gênio do futebol depois de ter conquistado o campeonato carioca de 1926 com o já na época modesto São Cristóvão. Em 1933, repetiu a conquista do caneco, desta feita com o Bangu. No entanto, fortes intrigas da época dão conta de que Vinhaes seria na verdade um mero testa-de-ferro para Carlito Rocha, convocado como árbitro para a Copa e que seria o comandante de fato da seleção. Por motivos óbvios, um juiz não poderia ser ao mesmo tempo treinador de uma das equipes, o que teria gerado a bizarra manobra de bastidores. Como reforço à teoria, surge o fato de que Carlito Rocha de fato esteve presente no único jogo brasileiro naquela Copa, no papel de delegado da CBD. Seja como for, Luís Vinhaes era um treinador de carreira consolidada na época em que assumiu a seleção, pioneiro no condicionamento físico e no cuidado com a alimentação dos atletas antes dos jogos, de modo que a história toda parece ter um considerável fundo de maldade.


A viagem para a Europa acabou sendo mais um capítulo pouco edificante da comédia de erros daquela Copa. Sob a alegação de estar poupando recursos (argumento estranho para quem pagava pequenas fortunas para alguns de seus jogadores), a CBD adiou em mais de uma semana a partida do navio que levaria a delegação à Europa. Quando o Conte Biancamano finalmente zarpou do RJ, faltavam apenas quinze dias para a estreia contra a poderosa seleção espanhola. No transatlântico, a condição física dos atletas foi deteriorando rapidamente, apesar dos esforços de Vinhaes em manter uma rotina diária de sessões de ginástica e de exercícios na piscina do convés. E o carteado tomou conta do ambiente a tal ponto que a comissão técnica viu-se forçada a emitir uma nota oficial, tentando restringir a jogatina a uma hora e meia por dia em nome do “descanso” de todos...


Foram onze longos dias de viagem e raquíticas 72h de recuperação antes da partida decisiva contra a Espanha. Depois de mais de uma semana em alto mar, um único treino foi agendado para a recuperação física dos jogadores. Convenhamos: não tinha como dar certo. Por mais qualidade individual que alguns jogadores eventualmente tivessem, não dava para encarar de igual para igual uma seleção tida à época como a melhor da Europa – e que, ainda por cima, tinha a comodidade de chegar à Itália em uma rápida e prática viagem de trem. Numa fórmula eliminatória desde a primeira fase, sempre em jogo único, a chance de um revés era muito alta – e assim foi.


O Brasil entrou no gramado do Luigi Ferraris em Genoa, naquele 27 de maio de 1934, com Pedrosa; Sylvio Hoffmann e Luiz Luz; Tinoco, Martim Silveira e Canalli; Luizinho, Waldemar de Brito, Leônidas, Patesko e Armandinho. Com menos de 18mins de jogo, já estava perdendo, com um gol de pênalti do atacante José Iraragorri. Minutos depois, Waldemar de Brito (que, afora esse erro, teve boa atuação) desperdiçou um pênalti, defendido pelo lendário arqueiro espanhol Ricardo Zamora. Fisicamente despreparados depois de uma longa viagem sem o necessário período de recuperação, os brasileiros sucumbiram diante do erro de Brito. Antes dos 30mins, o Brasil já tinha sofrido novos gols de Iraragorri e Langara, submetendo-se a um 3 a 0 com cheiro de grande fiasco. No segundo tempo, porém, o Brasil colocou a cabeça no lugar, equilibrou o jogo e conseguiu descontar, com um gol de Leônidas – além de ter um pênalti negado, com o zagueiro espanhol brincando de goleiro e metendo a mão na bola com a complacência da arbitragem. Uma reação digna - insuficiente, porém, para evitar a derrota e a muito precoce eliminação na Copa da Itália.

A derrota de 3 a 1 para os espanhóis gerou, além de uma série de constrangimentos, um problema logístico. Cientes de que iam encarar uma longa viagem, e dispostos a aproveitar o tempo na Europa para fazer propaganda do Brasil, os dirigentes agendaram uma série de amistosos contra equipes como Barcelona (ESP) e Porto (POR), além de combinados da Catalunha e de Portugal. O problema é que nada estava agendado para o período da Copa propriamente dito – e a eliminação causou uma folga de quase um mês, prognóstico sombrio para mais um período de ociosidade e decadência física. A solução? Agendar dois amistosos extras, contra quem quer que estivesse livre naquele período. Nisso, o Brasil encarou a Iugoslávia, que já tinha nos eliminado na Copa de 1930 e que nessa oportunidade mostrou ser mesmo uma touca brasileira, aplicando categóricos 8 a 4 na nossa seleção. O outro jogo, contra o Gradjanski (IUG), terminou num insosso placar sem gols. Nos demais amistosos já agendados, uma série pouco impressionante de empates e derrotas, tendo como solitárias vitórias um 4 a 2 contra o combinado português e um enganoso 6 a 1 contra um time misto do Sporting (POR). Muito pouco para tanta comoção, convenhamos.


Nem tudo foi negativo nessa história, e alguns nomes conseguiram destaque considerável nos anos seguintes ao fracasso italiano. Leônidas, todos sabem, jogou também a copa de 1938 e consolidou-se como nome lendário de nosso futebol. Waldemar de Brito (foto), embora hoje lembrado apenas como o olheiro que descobriu Pelé, jogou no San Lorenzo (ARG) e foi campeão carioca pelo Flamengo em 1939. Roberto Gomes Pedrosa, goleiro dessa seleção, destacou-se como dirigente do São Paulo e da Federação Paulista de Futebol, virando até nome do torneio que antecedeu o atual Campeonato Brasileiro. E não esqueçamos Anfilogino Guarisi (ou Filó, para os mais chegados), brasileiro naturalizado italiano que estava no grupo que venceu a Copa – e que, portanto, pode ser considerado o primeiro brasileiro campeão do mundo.



Seja como for, porém, 1934 entrou para a história de nosso futebol como um grande fracasso. Um torneio que acabou virando uma grande e cara viagem turística - ou um daqueles programas que prometem muito e, no fim das contas, acabam dando em nada. Pelo menos não imediatamente.

Fotos: delegação brasileira para a Copa de 1934 (Mochileiro.tur); equipe que entrou em campo contra a Espanha (Arquivo/Folha Imagem); Luís Vinhaes, treinador (Wikipedia); Leônidas chutando para grande defesa do zagueiro espanhol (Brazil in the World Cups); e Waldemar de Brito, em seus tempos de San Lorenzo (Museo San Lorenzo).

Link para a matéria original (blog Carta na Manga): http://cartanamanga.blogspot.com/2010/01/1934-ou-ferias-frustradas-na-europa.html

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