1966 - se não está quebrado, não conserte
Seleção brasileira posa para fotos antes da estreia contra a Bulgária. Em pé: Djalma Santos, Denílson, Belini, Gilmar, Altair e Paulo Henrique. Agachados: Garrincha, Lima, Alcindo, Pelé e Jairzinho.
É como se diz por aí: se chegar ao topo é difícil, segurar as pontas lá em cima é bem mais complicado. O sucesso é voraz, e muda rapidamente de ideia: se hoje ele está sorridente do seu lado, amanhã já pode estar levantando taças e ostentando medalhas em outra freguesia. Em 1962, como já narramos aqui, o Brasil conseguiu o que muitas vezes é o mais difícil: manteve o sucesso do seu lado, conquistando a Copa do Mundo pela segunda vez consecutiva. Mas o fato é que, depois de duas brilhantes campanhas aliando técnica exuberante com rigorosa organização, o Brasil resolveu resgatar seu já quase esquecido passado de irresponsabilidade administrativa. E o que é pior: refinando-o, caprichando nos absurdos, beirando a maestria absoluta na arte de ser desleixado, pretensioso e incompetente. E aí convenhamos, amigo/a leitor/a: não tinha mesmo como o sucesso continuar do nosso lado.
São tantos os erros dessa comédia sem graça, tão acentuada a falta de visão e de seriedade dessa campanha, que mesmo não tendo sido a mais desastrosa em termos absolutos – terminamos em 11º lugar na classificação geral, acima do 14º posto de 1934 – é comum ler e ouvir referências a 1966 como a pior campanha brasileira de todos os tempos. Um conceito que, para sermos honestos, tem uma grande dose de realidade. É tanta bagunça e tanta gente fazendo bobagem que a coisa vira quase um manual de não-conduta, uma lição inesquecível de como as coisas não devem ser feitas durante uma Copa. E é chocante perceber que as trapalhadas começam justo pela figura outrora mais respeitável, pelo dirigente visionário, pelo homem que pegou nosso espírito vira-lata e transformou o Brasil num cão da mais alta raça futebolística. Porque sim, infelizmente foi João Havelange quem fez as primeiras besteiras nessa série de incidentes às raias da sitcom.
Na época, o então dirigente máximo da CBD já fazia suas articulações no sentido de se tornar presidente da FIFA. A eleição em si seria concretizada apenas em 1974, mas enfim, essas coisas levam tempo mesmo. O problema é que, para consolidar a campanha internacional, Havelange começou a se deixar levar por um considerável personalismo, o que viria a minar sua relação até então inquebrantável com Paulo Machado de Carvalho. Embora os resultados de duas Copas não mintam a respeito da eficiência do “Marechal da Vitória”, o choque de ideias se tornou constante – e mais: a presença do empresário passou a ser um problema, na medida em que dividir os méritos com ele diminuía os méritos do próprio Havelange. Para brilhar sozinho, e para ganhar sozinho os méritos de um impactante tricampeonato consecutivo, Havelange concluiu que teria que tocar o barco sozinho. E assim fez ele: dispensou sem muita cerimônia os serviços de Carvalho e passou a acumular as tarefas de presidente da CBD e membro do Comitê Olímpico Internacional com os encargos de um chefe de delegação. Holofotes todos para Havelange, portanto – mas, como logo veremos, não foram exatamente louros da vitória o que nosso dirigente obteve com tão personalista manobra.
Outra mudança drástica ocorreu no comando técnico. Aymoré Moreira, mesmo com o título, seguiu sendo visto com reservas por boa parte da crítica esportiva brasileira. E a excursão pela Europa em 1963 não ajudou nem um pouquinho a melhorar essa relação. A ideia em si era altamente respeitável: fazer uma série de jogos em alto nível técnico, buscando renovar o plantel da seleção e começar a definir um grupo em direção à Copa que ocorreria três anos depois. O problema é que Aymoré, além de não ter jogo de cintura no relacionamento com a imprensa, precipitou-se na aplicação de seu plano, colocando jogadores novos demais de uma vez só e promovendo mudanças drásticas de padrão de jogo entre uma e outra partida. Substituir treinamentos por jogos importantes nunca é uma boa estratégia para consolidar um trabalho – ainda mais quando já estão querendo a sua cabeça numa bandeja para começo de conversa. O resultado foi previsível: uma série de derrotas – as piores delas um 3 a 0 contra a Itália e uma estrepitosa goleada de 5 a 1 sofrida contra a modesta seleção da Bélgica. Muito menos qualificados, mas certamente melhor preparados física e taticamente, os belgas colocaram o Brasil na roda, com direito a ‘hat trick’ de Stockman e um gol contra do lateral esquerdo Altair. Mesmo com algumas boas vitórias no fim da excursão, como uma goleada de 5 a 0 sobre Israel, os maus resultados pesaram muito contra o treinador. A situação de Aymoré Moreira nunca tinha sido muito cômoda, e essa fracassada excursão foi o melhor pretexto para aumentar a pressão e garantir a tão desejada mudança na comissão técnica.
O escolhido para recolocar o Brasil nos eixos não poderia ter sido mais inadequado e, ao mesmo tempo, tão previsível. Num período em que se buscava renovação, o timão foi colocado nas mãos de Vicente Feola – ele mesmo, o gorducho bonachão que cochilava no banco de reservas e que treinou o Brasil campeão de 1958. Substituído pelo próprio Aymoré Moreira por conta de problemas de saúde, Feola estava recuperado, e supostamente pronto para recuperar o que seria seu lugar de direito. Como tinha sido campeão, Vicente Feola conheceria os atalhos e estaria pronto para ser campeão de novo. Parece uma boa ideia, não? O problema é que, embora muito mais simpático do que seu antecessor, nosso novo timoneiro tinha uma desagradável tendência a confundir-se no uso da bússola e a ouvir os conselhos de todos na hora de definir a rota. Ou seja, tratava-se de um cidadão indeciso por natureza – e se em 1958 ele tinha sido blindado por Paulo Machado de Carvalho, desta vez estava sozinho para encarar as pressões que vinham de todos os lados. E simplesmente não conseguiu dar conta do recado.
Porque, meu/a amigo/a, pressão não faltou sobre aquela comissão técnica. A seleção brasileira havia se tornado o que é até hoje – uma vitrine de atletas, adequada para os leilões em um milionário balcão de negócios. E todo mundo queria ter um jogador de seu plantel (ou de sua lista de jogadores agenciados) ostentando o tão valorizado uniforme canarinho. Além disso, movimentos vindos do Rio de Janeiro queriam recuperar o poder político dentro de nosso futebol, aproveitando o enfraquecimento do lado paulista com a saída de Paulo Machado de Carvalho. Foi não apenas uma ressurreição extemporânea de implicâncias que tanto nos atrapalharam nas primeiras Copas do Mundo – tratou-se, também, de uma guinada em direção ao eixo de poder que hoje conhecemos, com a CBF sediada no Rio e tudo o mais. Pressões nesses dois sentidos se tornaram uma constante, e a convocação de atletas para a Copa da Inglaterra passou a ser estratégica não apenas para valorizar equipes e jogadores, mas também como mecanismo de barganha e posicionamento político. Aqui entre nós, não tinha jeito de tantos interesses caberem numa mera convocação de vinte e dois jogadores.
E se não cabe em vinte e dois, como resolver? Simples: convocando mais de uma seleção. Foi essa ideia, patética na sua pretensão de genialidade e inovação, que o Brasil pôs em prática na reta final de sua preparação para a Copa. Um total de quarenta e sete atletas foi convocado para três meses de preparação, e dividido em nada menos que quatro equipes simultâneas. Cada uma das “seleções” levava, em um misto de populismo e raciocínio simplório, cores relativas à bandeira nacional – azul, verde, branco e grená – para que no final da fase de preparação todas se unissem no amarelo de nossa seleção. Bonito, não? Isso sem contar os critérios de convocação para os jogadores, não raro beirando o absurdo. Por exemplo, consta que alguns dirigentes reclamaram de uma suposta carência de atletas do Corinthians na lista dos quarenta e muitos convocados. Para agradar os ressabiados cartolas, foi indicado na última hora o nome de Ditão, zagueiro do Timão. Na hora de transcrever a convocação, no entanto, houve um equívoco e colocou-se o nome de outro Ditão, o do Flamengo. E – supremo horror! – simplesmente deixou-se a coisa por isso mesmo, preferindo fazer de conta que chamar o flamenguista era ideia desde o início a ter que admitir que aquele arremedo de comissão tinha conseguido errar até na hora da politicagem...
Ficamos um longo período nessa brincadeira, queimando dinheiro em cinco concentrações diferentes - Teresópolis, Caxambu, Lambari, Três Rios e Niterói – e disputando uma série imensa de jogos-treino sem maior método ou objetividade. Nenhum amistoso mais focado, nenhum confronto para preparar taticamente uma equipe nem nada disso: apenas as quatro sub-seleções enfrentando umas às outras, com os atletas envolvidos numa disputa interna sob a ameaça constante de corte. A inchada delegação ficava pulando de uma sede para outra, numa mistura de circo mambembe com primária e pouco eficiente política de boa vizinhança. Preparando fisicamente esse batalhão de atletas, tínhamos um novo especialista na figura de Rudolf Hermanny, um renomado treinador de judocas e caratecas. Dispensar um profissional eficiente como Paulo Amaral, nosso antigo preparador, em nome de alguém sem qualquer vivência no futebol já escancara o absurdo daquela preparação que nascia fadada à ruína. Fazer isso em meio a uma viagem cigana, sem nenhuma padronização em termos de cronograma, instalações, objetivos ou qualquer outra coisa, era uma auto-sabotagem populista beirando o pastelão.
No fim das contas, depois de três meses de jogos inconclusivos e de uma viagem a Malmoe (SUE) que foi mais turismo do que preparação para a Copa, tivemos o resultado esperado: nossa comissão técnica não fazia a menor ideia de qual era o time para o Mundial. A confusão era tamanha que já na Inglaterra, na reta final da preparação, tínhamos pessoas ligadas ao projeto pedindo as contas e abandonando o barco antes que o naufrágio fosse consumado. Vicente Feola, pelo jeito, sentiu também que era caso de pedir penico – mas, para sua própria desgraça, era ele mesmo o comandante do Titanic, o cacique daquela tribo desorganizada e desunida. Impossibilitado de desistir, sem nenhum tipo de apoio e ciente de que dificilmente teria tempo de transformar aquele limão azedo em algum tipo de limonada, o sempre bem-humorado treinador caiu em inusitado e preocupante desânimo. Já suficientemente confusos com a maratona de jogos sem sentido, os jogadores recebiam da comissão técnica um clima pesado e desencorajador. Nessas circunstâncias, nomes destacados como Pelé, Garrincha, Djalma Santos e Zito pouco podiam fazer – e nomes recentes e promissores como Edu (com meros 16 anos), Tostão, Jairzinho e Alcindo ficavam em situação difícil, tendo que mostrar serviço em meio a essa situação toda.
O primeiro ato em nossa tragédia mais do que anunciada deu-se no dia 12 de julho de 1966, no Goodison Park de Liverpool. Sabe-se lá como, Vicente Feola e os poucos que se mantiveram leais a ele definiram uma escalação para a estreia – e o Brasil entraria em campo com Gilmar; Djalma Santos, Bellini, Altair e Paulo Henrique; Denílson e Lima; Garrincha, Jairzinho, Pelé e Alcindo. Em uma partida pouco brilhante, conseguimos arrancar uma vitória de 2 a 0 contra o modesto selecionado búlgaro – dois gols de falta, em cobranças de Pelé e Garrincha. O Mané, aliás, já estava jogando mais no nome do que na bola: uma artrose cruel devorava-lhe o joelho direito, e mesmo que sua presença ainda fosse temível, o homem já não conseguia mais dar os dribles e arrancadas que fizeram sua fama.
Foi uma vitória útil, claro, mas que acabou tendo reflexos dramáticos no restante da campanha. Mal preparados fisicamente, os jogadores terminaram exaustos a partida de estreia, e o intervalo entre os jogos era muito curto para um recondicionamento físico. Ainda mais sabendo que o preparador da seleção não tinha o conhecimento necessário para tal coisa... Entre os que não se recuperariam a tempo de encarar a Hungria, estava nada menos que Pelé, nosso principal nome naquela Copa. Para substituí-lo, Tostão, na época uma jovem promessa do Cruzeiro. Denílson também se mostrou incapaz de disputar o segundo jogo, e deu espaço ao botafoguense Gérson. Não eram más reposições, pelo contrário – mas eram jogadores ainda jovens, com a responsabilidade de carregar o piano para um restante de time cansado, mal treinado e sem entrosamento. A Hungria não era mais a máquina que havia enchido o mundo de temor, mas ainda era um time forte e de bons talentos individuais, além de ter como credencial recente o terceiro lugar na Eurocopa de 1964. E o mais importante de tudo: era um time coeso, bem esquematizado e preparado para o novo futebol de alto desempenho físico que vinha surgido nos últimos anos. Nossa última derrota em Mundiais tinha sido contra os próprios húngaros, em 1954, no jogo que nos eliminou nas quartas de final da Copa da Suíça e, graças ao não-futebol que apresentou, entrou para a história como a “Batalha de Berna”. E seguimos, previsivelmente, vestindo a touca: 3 a 1 para os húngaros, numa partida em que nossa equipe fracassou praticamente o tempo todo. Conseguimos arrancar um empate no primeiro tempo, com Tostão aproveitando rebote de cobrança de falta e descontando cedo o gol de Bene. Ainda perderíamos ótimas chances de virar o jogo, mas a maionese desandou na segunda etapa: levamos mais dois gols (Farkas e Mészöly, de pênalti) e podíamos ter tomado ainda mais, sem que fosse cometida nenhuma injustiça. Uma derrota daquelas que complica muito qualquer campanha – e o pior é que nem dá para se queixar de nada, porque foi muito justa. Disciplina e preparo físico contra talento individual sem qualquer organização – não precisava ser Rodrigo Tudor para adivinhar no que ia dar...
Depois desse tropeço entre tantos tropeços, estávamos em maus lençóis. Nosso derradeiro adversário, Portugal, vinha em excelente momento, alavancado pelo brilhantismo do craque Eusébio. Como os portugueses já tinham duas vitórias, o Brasil era obrigado a vencer para pleitear a classificação. E a pressão, vinda de todos os lados, parece ter sido demais para Vicente Feola. Depois de dois jogos com o mesmo time, com algo próximo de um formação ideal de time, nosso treinador resolveu mudar tudo: trocou todo o sistema defensivo (incluindo o goleiro Gilmar, que tinha tido atuação destacada nas duas primeiras partidas), sentou Garrincha no banco e trouxe Pelé de volta ao time, mesmo que ele ainda não estivesse em condições ideais de jogo. OK que a derrota contra a Hungria tinha sido péssima, mas dos onze que jogaram apenas Lima e Jairzinho foram escalados contra os portugueses – e convenhamos, mudar nove jogadores às vésperas de uma partida decisiva não é de modo algum a melhor maneira de pensar as coisas.
De novo, não é preciso ter ligações de parentesco com algum vidente televisivo para dizer, sem medo de errar, o que ia sair dessa feijoada requentada que ficou o dia todo na panela. Levamos novo 3 a 1 na cacunda, saímos da Copa muito mais cedo e ainda levamos um considerável baile em pleno Goodison Park de Liverpool. Verdade que os portugueses botaram os cabritos para mamar sem medo: um festival de faltas violentas, a maioria delas dirigidas a um Pelé já fora das condições ideais de jogo. Era um revezamento: ia um lusitano em cima do Rei e baixava o cacete, mal o craque se levantava e outro surgia para descer a ripa. Nem mesmo Eusébio, elegante e qualificado craque vindo de Moçambique, furtou-se a dar algumas no meio do fragilizado craque da nossa seleção. Resultado: mesmo tendo segurado até o fim, Pelé saiu de campo urrando de dor em pelo menos duas jogadas mais ríspidas, e terminou o jogo mancando e incapaz de fazer qualquer diferença. Enquanto Mr. George McCabe deixava a cobra fumar, os portugueses iam metendo as buchas, diante de um Brasil desconjuntado, atônito e quase sem fôlego. O segundo gol de Eusébio, faltando cinco minutos para o fim e num momento em que o Brasil ensaiava uma reação rumo ao empate, acabou sendo – só para usar outra metáfora do Away de Petrópolis – a lambida definitiva no pescoço brasileiro. O golpe fatal que acabou com a palhaçada e fez com que nossa seleção voltasse cedinho para casa. Triste, bastante violento, quase trágico – mas inegavelmente justo. Uma despedida melancólica de um time que foi, o tempo todo, um rascunho de tragédia.
Voltamos, em 1966, a resgatar o que de pior havia existido em nosso futebol. Voltamos a ser aquele vira lata que sai de casa latindo como um fila, mas que volta todo molhado de chuva e com o rabinho entre as pernas. Numa comédia de tantos erros que acabou perdendo a graça, coube a João Havelange o último ato, assumindo publicamente o fracasso da delegação que liderou de forma tão frouxa e distante do estadista que costumamos associar a sua imagem. Dos vinte e dois convocados, apenas o lesionado Zito e o ainda muito jovem Edu não entraram em campo – o que demonstra não apenas o espírito democrático de Vicente Feola, mas também a falta absoluta de foco e de visão. Difícil entender como foi possível, depois de duas conquistas consecutivas, degringolarmos a esse ponto. Porém, é seguro dizermos que essa presepada toda rendeu lá os seus frutos. Talvez, diriam os mais filosóficos, fosse preciso morrer no outono para renascermos fortes e renovados na próxima primavera. E assim seria, como 1970 não poderia jamais nos deixar mentir.
Fotos: seleção brasileira posa como se nada estivesse acontecendo (Museu dos Esportes); delegação do Brasil gravando videoclip nas ruas de Liverpool (Blog do Sérgio Barbalho); jogadores acenam para a derrota antes de encarar a Hungria (Brazil in the World Cups); Garrincha encara sem medo e sem joelho a marcação búlgara (Arquivo - UOL); e Eusébio tenta colocar a cabeça de Pelé de volta no lugar (AP).
Link para a matéria original (blog Carta Na Manga): http://cartanamanga.blogspot.com/2010/01/1966-se-nao-esta-quebrado-nao-conserte.html