1998 - quem tem medo do Lobo Mau?


Brasil perfilado para encarar a Holanda. De pé: Taffarel, Rivaldo, Cesar Sampaio, Aldair, Júnior Baiano e Cafu. Agachados: Ronaldo, Roberto Carlos, Bebeto, Leonardo e Dunga.

“Vocês vão ter que me engolir!” A sentença, pronunciada com raiva por um senhor de cabelos brancos e rosto em chamas, tornou-se uma espécie de bordão em 1997, marcando o imaginário popular com o desabafo de quem triunfa em meio às críticas. O autor da frase: Mário Jorge Lobo Zagallo, treinador da seleção brasileira de futebol. Tinha acabado de vencer a Bolívia por 3 a 1, na grande decisão da Copa América daquele ano, partida difícil na qual o Brasil foi muito pressionado, levou bolas na trave quando o jogo ainda estava empatado e só no fim do jogo conseguiu a vitória. Indignado com as críticas que recebia, em um momento de desafogo, o Velho Lobo deixou a emoção falar mais alto. Aos gritos, reafirmou-se como homem vitorioso e competente, um conhecedor de futebol pronto para conduzir o país a voos ainda mais altos. E partiu para o ataque, sem medo e sem reservas, chutando o balde contra todos os que supostamente desprezavam sua história no futebol.



(o vídeo refere-se à decisão da Copa América de 1997. Para ir direto ao destempero de Zagallo, pule para 2’17’’)

Nunca antes um treinador brasileiro tinha tido tanto tempo para montar uma seleção. Zagallo assumiu as rédeas da equipe ainda em 1994, pouco depois da histórica decisão de pênaltis no Rose Bowl de Los Angeles. Parreira, desgastado pela enorme carga de críticas que tinha recebido durante todo o seu período como treinador da seleção, pediu as contas logo após o tetra. Preferiu sair por cima, sem maiores despedidas, abrindo espaço rapidamente para um novo comandante. Que no fim das contas não foi tão novo assim: Zagallo, auxiliar técnico do mesmo Carlos Alberto Parreira na vitoriosa campanha dos EUA, foi logo confirmado por Ricardo Teixeira como comandante da seleção.

Era uma solução de caráter evidentemente mágico, ainda que não desprovida de justificativas. Tratava-se, naquele momento e até hoje, do único homem a ganhar quatro Copas do Mundo, duas como jogador, outra como treinador, uma como auxiliar. Sua história em Copas vinha desde antes do primeiro título, conquistado como atleta em 1958 – prestando serviço militar, foi um dos soldados deslocados para a segurança do Maracanã na histórica partida final da Copa de 1950, contra o Uruguai. O nome Zagallo, portanto, era sinônimo de seleção canarinho. E pouca importância se deu ao fato de sua última passagem pelo comando, na Copa de 1974, ter sido um considerável fracasso. Vivíamos a euforia do tetra, da retomada de nosso orgulho, de nossa reafirmação como potência futebolística. Zagallo, segundo muitos, era a alma por trás de tudo isso, a lenda viva que nos conduziria ao incrível pentacampeonato.

Mas foi uma viagem bastante confusa, a que tivemos com o Lobo no comando. Em busca de uma renovação sempre saudável, embarcamos numa longa jornada de testes, usando um incontável número de jogadores. Justiça seja feita: Zagallo deu muitas chances aos jogadores que atuavam no Brasil, sem distingui-los tanto assim dos badalados “estrangeiros”. Mesmo assim, é quase cômico lembrarmos, mais de uma década depois, que nomes como Narciso, Beto, Jamelli, Zé Maria e Oséas chegaram a disputar partidas pela seleção. Até mesmo Christian, o “Deus Negro” do narrador gaúcho Pedro Ernesto Denardin, teve a sua chance de fardar com a amarelinha. Alguns nomes tidos como futuros heróis da Canarinho, como o goleiro Danrlei e o atacante Djalminha, decepcionaram e não foram longe nas convocações. Outros não tiveram comportamento condizente com as chances que estavam recebendo. É o caso de Arílson, então um jovem craque de 21 anos, que simplesmente fugiu da concentração da equipe que disputaria o Pré-Olímpico e, compreensivelmente, nunca mais teve chances com Zagallo ou com qualquer outro treinador de seleção.

Potencial para uma ótima equipe havia, sem a menor dúvida. Jogadores qualificados como Rivaldo e Cafu surgiam com força, consolidando suas presenças entre os grandes nomes daquela geração. Ambos, na época, iniciavam sólidas carreiras internacionais – Cafu na Roma (ITA), Rivaldo no La Coruña e, logo depois, no Barcelona (ESP). Roberto Carlos, o lateral esquerdo, iria ainda mais longe: depois de uma temporada na Internazionale (ITA), tornou-se um ídolo no Real Madrid (ESP), empilhando títulos e sendo listado entre os maiores craques da história dos Merengues. Dando sustentação a esses novos nomes, a espinha dorsal da Copa de 1994, com nomes inquestionáveis como Taffarel, Dunga, Aldair, Romário, Bebeto e Leonardo. Ronaldo tinha sido eleito melhor jogador do mundo dois anos seguidos (1996 e 1997) e seria companheiro perfeito para Romário, que mesmo não sendo mais garoto ainda continuava endiabrado e empilhando gols. Somando tudo isso ao potencial das várias promessas surgindo a cada instante nos gramados do Brasil, tínhamos um manancial invejável, peças mais do que suficientes para passar por cima de tudo e todos nos verdejantes relvados da França.

Mesmo sem disputar eliminatórias, o Brasil teria uma série de competições pela frente, entre Copa América, Copa das Confederações, Copa Umbro, Copa de Ouro e outras (ainda) menos cotadas. Isso sem contar o Pré-Olímpico e a própria Olimpíada de Atlanta, chances de ouro para buscar na juventude os jogadores que revitalizariam de vez a nossa seleção. Mas Zagallo parece ter se atrapalhado com tanta fartura e comodidade, e mesmo quatro anos não foram suficientes para afirmar uma escalação titular ou mesmo para consolidar um grupo de jogadores. A pressão era grande, e Zagallo foi forçado a aceitar a presença de Zico, escalado pela CBF como coordenador daquela seleção. O diagnóstico interno era de que o Lobo era bom motivador, sabia como tirar o melhor dos jogadores, mas que ficava atrapalhado sempre que tinha que tomar decisões mais drásticas – e que a presença do Galinho, com o cartaz em alta depois de ter sido Secretário de Esportes do governo Collor, daria um contraponto importante para o subjetivismo de Zagallo.

A convocação final demonstrou claramente o quanto de incerteza havia na comissão técnica do Brasil. Ronaldo, tido como a maior revelação de nosso futebol, vivia momento de dificuldade técnica, mas estava prestigiado e foi presença certa na lista. Doriva, também muito criticado, igualmente marcou presença na convocação. A grande surpresa, porém, foi a presença de Giovanni, jovem meia que havia ficado mais de um ano sem ser chamado, teve atuação muito ruim nos últimos amistosos e mesmo assim viu-se, em um passe de mágica, na relação final. Mais ainda: os primeiros treinos da preparação, feitos já em território francês, mostravam Giovanni como titular no meio de campo, em uma decisão que ninguém conseguia entender. Em resumo, uma seleção que parecia confusa e indecisa antes mesmo de entrar em campo. Para consumo externo, porém, tudo ia às maravilhas: a comissão técnica era unida, os jogadores formavam uma grande família, e a nau brasileira singrava águas tranquilas rumo ao aguardado pentacampeonato. Aos que questionavam a falta de consistência de nossa seleção, bem, restava preparar bem a garganta e engolir a verborragia de Zagallo, cada vez mais acentuada na medida em que a estreia contra os escoceses se aproximava.

O grande episódio pré-Copa, no entanto, foi a surpreendente dispensa de Romário. Nome incontestável depois da primorosa participação na Copa anterior, o Baixinho sofreu uma lesão na panturrilha em partida contra o Friburguense, e logo se tornou motivo de uma verdadeira novela nacional. O primeiro diagnóstico dos médicos era otimista: era uma lesão sem maior gravidade, e com o tratamento adequado nosso chapa Romário teria condições de jogo muito em breve. Lídio Toledo, chefe do corpo médico da delegação, foi mais longe: para ele, o atacante estaria pronto já para a estreia brasileira contra a Escócia. O Baixinho, confiante, batia no peito e dizia que no máximo até o começo da segunda fase estaria pronto para jogar.

Zagallo e Zico, porém, tinham dúvidas. O segundo citou seu próprio exemplo, na Copa de 1986: lesionado, foi convocado por Telê Santana, não conseguiu se recuperar adequadamente e acabou tendo grande peso na eliminação, perdendo pênalti na partida contra a França. Além disso, o plantel teria nomes de suficiente qualidade para cobrir a ausência do Baixinho. Ronaldo era nome fortíssimo, titular inquestionável em qualquer seleção do mundo; Bebeto e Denílson viviam saudável disputa pela segunda posição de ataque; Edmundo seria outro nome útil em caso de necessidade.

A partir desse raciocínio, foi gerada uma solução surpreendente. Mesmo com o tratamento intensivo e com os prazos previstos para recuperação, Romário foi cortado no último dia antes da confirmação final dos nomes para a Copa. Era um risco mantê-lo no plantel, segundo a comissão técnica – e, ao invés de substituí-lo por outro atacante, a opção foi chamar Emerson, volante de atuação destacada no Bayer Leverkusen e ausência muito sentida na primeira convocação. Com isso, o plantel ganharia mais equilíbrio, e não ficaria na dependência de um atleta que provavelmente não se recuperaria a tempo de jogar. Romário, chocado, fez pesadas críticas a Zico, a quem responsabilizou pela decisão. A briga entre os dois ganhou as manchetes durante muitos anos, ao ponto de o Baixinho mandar pintar na porta do banheiro do seu antigo bar Café do Gol uma imagem “homenageando” a dupla que o tinha barrado, com Zagallo sentado no vaso sanitário e Zico segurando o papel higiênico...

A decisão foi bastante contestada pela falta de convicção – afinal, convocou-se um jogador que já se sabia descontado, apenas para dispensá-lo logo adiante. A dupla Ro-Ro (Romário e Ronaldo), tão sonhada por todos, ficou na saudade. E a manobra acabou sendo totalmente ridicularizada pelos acontecimentos posteriores. No mesmo dia do segundo jogo brasileiro, contra Marrocos, Romário já estava à disposição do Flamengo - e acabou jogando partidas oficiais pelo clube da Gávea muito antes do fim da Copa do Mundo.

Foi debaixo desse mau tempo todo – embora enchendo a boca para dizer que tudo estava bem – que o Brasil entrou em campo no dia 10 de junho de 1998, diante de quase 80 mil torcedores, no Stade de France em Saint-Denis. A equipe escalada para enfrentar a Escócia tinha Taffarel; Cafu, Aldair, Júnior Baiano e Roberto Carlos; Dunga, Cesar Sampaio, Giovanni e Rivaldo; Bebeto e Ronaldo.

Foi um começo com a cara do Brasil que Zagallo tinha desenvolvido (ou não) durante quatro longos anos. Com visíveis inconsistências táticas, apoiando-se muito mais no brilhantismo de algumas peças do que na força coletiva, o Brasil abriu a Copa com uma vitória de 2 a 1, mas sem demonstrar um futebol que reforçasse o seu muito cantado favoritismo para o título. Saímos cedo na frente, gol de Cesar Sampaio, mas cedemos o empate ainda no primeiro tempo, e foi preciso que o zagueiro Tom Boyd fizesse um gol contra para que o Brasil saísse de campo com a vitória. Placar magro, começo manquitolante, contra uma equipe que terminaria lanterna do grupo – mas ao menos era a vitória, e a vitória em Copa do Mundo nunca é um mau negócio.



Giovanni, o surpreendente titular da estreia, jogou muito mal e foi substituído no intervalo. Para a partida seguinte, Zagallo optou por Leonardo, lateral esquerdo em 1994, agora deslocado para a armação no meio de campo. Com uma formação bastante ofensiva, o Brasil entrou em campo com outro espírito contra Marrocos, e o resultado ficou visível dentro de campo. Jogando com naturalidade e fluência, conquistamos um 3 a 0 bastante tranquilo, em uma partida na qual praticamente só um dos lados jogou. Cesar Sampaio, pouco comentado antes da estreia, transformou-se em um dos destaques daquele time, fazendo a ligação da defesa com o ataque de forma aguda e eficiente. A vitória garantia a vaga brasileira para as oitavas, e dava tranquilidade para pensar no futuro na competição.

Porém, nem tudo era alegria: exaltado com uma jogada de pouca firmeza de Bebeto, o capitão Dunga subiu nas tamancas e por pouco não desfere uma cabeçada no atacante. Leonardo, experiente e centrado, foi cobrar tranquilidade do capitão e por pouco não levou, ele também, os viris cumprimentos do Anão mais zangado daquela seleção. O destempero de Dunga ganhou as manchetes, criando um ambiente tenso na delegação. E mais: chateou o próprio Dunga, que se sentiu questionado em sua autoridade e diminui visivelmente a carga de cobrança nas partidas seguintes. Manifestações positivas de colegas e da comissão técnica tentaram acalmar os ânimos, mas não adiantou muito: Dunga não seria mais o mesmo até o final daquela Copa.



Garantido na próxima fase, o Brasil entrou sem maiores compromissos para a última partida da fase de grupos, contra a Noruega. Incapaz de controlar a língua, o Lobo mandou um “recado” para Egil Olsen, treinador norueguês que havia demonstrado confiança em obter uma vitória contra o Brasil. Lembrando a vitória de 4 a 2 obtida em amistoso no ano anterior, Olsen dizia que a vitória contra os atuais campeões do mundo era possível. Nosso treinador, diplomático como só ele, retrucou: se fosse ele, Zagallo, o treinador da Noruega, os escandinavos já estariam classificados para a próxima fase. Antes do jogo, um momento insólito e tocante: a brasileira Rosângela de Souza e o norueguês Oyvind Ekeland casaram-se em pleno gramado, em um evento certamente mais divertido do que os tradicionais pontapés iniciais de Pelé e Cia.

O Brasil entrou em campo com pequenas mudanças. Gonçalves jogou na zaga, em lugar de Aldair; Leonardo abriu espaço no meio de campo, com a entrada de Denílson praticamente transformando a seleção em um 4-3-3. Os efeitos práticos, no entanto, longe estiveram de emocionar. Jogo pobre, de poucas soluções, com uma Noruega preocupada em não perder e um Brasil totalmente desinteressado de ganhar. Curiosamente, só próximo do final é que a partida ganhou cores mais vivas. Bebeto marcou aos 32mins do segundo tempo, em um resultado que empolgou os marroquinos, que venciam a Escócia e assim classificavam-se para uma inédita disputa de oitavas de final. Mas a reação da Noruega, além de surpreendente, foi letal. Tore Andre Flo empatou aos 37mins, e Júnior Baiano cometeu pênalti aos 43mins da etapa final, permitindo que Rekdal marcasse o gol e garantisse a inesperada vitória norueguesa. Questionado após o jogo, Zagallo exercitou o seu conhecido dom para frases de efeito: classificação para as oitavas era rotina para o Brasil, e nossa Copa só começaria mesmo na próxima semana, contra o Chile. Que assim fosse, então – ainda havia um bom caminho para engolir, digo, para seguir.



Contra os chilenos, a pouca modéstia de Zagallo continuou valendo. Foi um passeio, talvez a mais tranquila de nossas atuações, e o 4 a 1 é testemunho fiel da superioridade brasileira na partida. Leonardo e Aldair, de volta ao time, deram a consistência necessária para o controle das ações. Cesar Sampaio, em atuação de luxo, guardou duas buchas; Ronaldo, já livre das críticas que havia recebido antes do começo da competição, marcou os outros dois gols. Salas ainda descontaria, mas a verdade é uma só: o baile, naquela noite no Parc de Princes de Paris, foi todo brasileiro. E assim seguíamos nossa montanha russa futebolística: mudando escalações a cada jogo, revezando atuações seguras com momentos de séria instabilidade, e de qualquer modo seguindo em frente.



Contra a Dinamarca, o Brasil precisou pela primeira vez apresentar futebol de alto nível e, além dele, considerável dose de superação. Mesmo longe de ser uma equipe perigosíssima, os dinamarqueses contavam com os irmãos Laudrup em grande momento, e com a presença sempre temível de craques como Helveg e Jorgensen. O segundo, inclusive, abriu o placar logo aos 2mins de jogo, em um começo tenebroso do sistema defensivo da nossa seleção. A reação foi rápida, com gols de Bebeto (9mins) e Rivaldo (25mins), em uma reação enérgica e empolgante. O Brasil demonstrava sua força diante de um adversário tinhoso, jogando com confiança, atacando forte e finalmente demonstrando segurança defensiva. No início da segunda etapa, o susto: Brian Laudrup guarda uma bucha de respeito, iguala novamente o placar e deixa os brasileiros crispados de preocupação. A partir dali, um confronto disputado, que felizmente terminou bem para o nosso lado, com outro gol de Rivaldo aos 15min da etapa final. No fim das contas, resultado justo para ambos: a classificação brasileira premiava o time com mais recursos, enquanto os dinamarqueses saíam orgulhosos, com um ótimo enfrentamento e uma eliminação muito digna na bagagem.



Nas semifinais, mais uma vez tínhamos a Holanda pela frente. Nos dois confrontos anteriores, válidos por partidas de Copa do Mundo, dois jogaços. O primeiro, em 1974, levou o Carrossel Holandês para a final; o segundo, em 1994, classificou o Brasil para a semifinal em um dos melhores jogos da História do torneio. Zagallo estava presente em ambos, de modo que já poderia conhecer um pouco mais dos holandeses – afinal, suas frases desastradas em 1974 entraram para a história do anedotário futebolístico. Que nada: em entrevista pós-jogo, o Lobo matreiro tentava explicar as dificuldades táticas do jogo, e no meio da explanação chamou o habilidoso lateral Cocu de “Cocô”...

Fiel à tradição das duas equipes, tivemos mais um jogo espetacular. E, de novo, nos resta deixar que as imagens testemunhem todos os lances dessa excelente partida de futebol. O Brasil, depois de todas as oscilações do começo de campanha, finalmente mostrava o futebol intenso e envolvente que se espera de um campeão do mundo; a Holanda, por sua vez, honrava sua história de equipe capaz de aliar tática e brilhantismo, mostrando um futebol envolvente e de muitas soluções ofensivas. As defesas dos dois times merecem destaque – afinal, quem analisa apenas pelo 1 a 1 do placar final pode pensar que foi um jogo morno, o que de modo algum foi o caso. O Brasil abriu o placar no finalzinho da primeira etapa, gol de Ronaldo, e passou a maior parte do tempo sustentando um placar magro, mas muito interessante dada às circunstâncias do jogo. Aos 43 do segundo tempo, porém, o craque Kluivert fez justiça no placar, e arrastou o jogo para uma emocionante, ainda que infrutífera prorrogação.

Nos pênaltis, como em 1994, brilhou a nossa estrela. Taffarel pegou as cobranças de Cocu e Ronald De Boer, enquanto nossos quatro batedores (Ronaldo, Rivaldo, Emerson e Dunga) tiveram precisão implacável. De nada adiantou Frank De Boer e Bergkamp acertarem seus chutes: o 4 a 2 dava a classificação ao Brasil, e garantia a seleção canarinho na disputa da grande final contra os franceses.



Bueno... É totalmente impossível dizer qualquer coisa sobre a grande final de 1998 sem citar o até hoje nebuloso incidente envolvendo Ronaldo e seu ataque epiléptico, certo? Foi de fato um choque que atingiu o mundo inteiro de surpresa, minutos antes do começo da grande decisão. Quando todos estavam se preparando emocionalmente para o grande embate entre Brasil e França, surge a lista de jogadores do Brasil – e a surpresa é tão grande que muitos jornalistas só perceberam a situação ali mesmo, na hora, enquanto liam ao vivo a escalação confirmada de nossa seleção. No final da lista, ao invés do nome de Ronaldo, constava a inesperada e inexplicável escalação de Edmundo para a grande decisão. O que teria ocorrido? Depois de momentos de incredulidade, todos foram correndo atrás de suas fontes, tentando entender o que diabos estava tirando o craque brasileiro da disputa da final. Conta-se que o próprio Carlos Alberto Parreira, acomodado na tribuna de honra do Stade de France, foi interrogado por repórteres logo após a descoberta, respondendo atônito que nada sabia a respeito da decisão de seu amigo Zagallo. Pouco depois, ainda mais surpresa: Ronaldo entrou em campo, pronto para jogar, transformando o anúncio de sua saída em algo ainda mais estranho e misterioso.

A princípio, falou-se de uma contusão misteriosa e de última hora; houve quem ventilasse boatos de uma grande briga entre Zagallo e o craque, minutos antes da equipe entrar em campo. Com o tempo, porém, a verdade começou a surgir. O médico Lídio Toledo, em nota oficial, revelava: o jovem atleta de 21 anos tinha sofrido uma convulsão em plena concentração, logo após o almoço de domingo. Mais tarde, soube-se que o ataque aconteceu ainda antes, no sábado que antecedia a final. Levado imediatamente ao hospital, recebeu tratamento imediato e foi recomendado repouso, o que o deixaria incapaz de entrar em campo. Zagallo, então, decidiu escalar Edmundo para a partida. Já durante o aquecimento para o jogo, a surpresa: Ronaldo surge, pretextando confiança, e pede para jogar. Mais do que a incerteza sobre as reais condições do atleta, pesou para o Lobo a enorme pressão de ignorar os pedidos do craque maior do time – e aceitou escalar o homem para o jogo.

Medida absolutamente inútil, como uma rápida visão dos melhores momentos da decisão pode facilmente comprovar. Muito se falou da péssima atuação de Ronaldo – desligado, lento, sem reflexos e explosão. Mas não foi só ele: na verdade, toda a equipe sentiu o baque, e teve uma atuação muito abaixo das suas potencialidades. Em entrevistas pós-jogo, o clima ruim dentro da concentração revelou-se: preocupados, os jogadores nem conseguiram dormir direito na véspera do jogo final. Em campo, um evento em especial dá a exata medida do abalo emocional dos brasileiros. No segundo tempo, já perdendo por 2 a 0, o jogador Rivaldo chutou a bola para fora de campo, de modo que o francês Dugarry pudesse ser atendido. Um fair play até bonito, mas totalmente fora de hora – e que recebeu uma reação desproporcional de Edmundo, xingando aos berros o colega de time em um momento que por si só já era muito tenso. Não havia equilíbrio, não havia concentração, não havia foco nem tranquilidade do lado brasileiro. Os franceses, por sua vez, jogavam em casa, determinados, pensando em absolutamente nada que não fosse a conquista inédita em seu próprio território. E o resultado de tudo isso só podia ser o que de acabou sendo: uma partida unilateral, na qual a França dominou as ações e o 3 a 0 final saiu até barato para o Brasil. Abaixo, os melhores lances da grande decisão – que acabou sagrando um justo campeão, ainda que em circunstâncias das mais desagradáveis.



Muito se falou posteriormente das circunstâncias da derrota brasileira. Comenta-se até hoje, por exemplo, que um atleta como Ronaldo, jovem e no auge físico, jamais teria um ataque inesperado de epilepsia, mesmo nas tensas horas antes de uma decisão de Copa do Mundo. Para esses críticos, ou a situação foi mal diagnosticada e Ronaldo teve na verdade uma crise histérica, ou teria sofrido uma reação alérgica a xilocaína, aplicada para diminuir suas dores antes do jogo. Outros, mais afeitos a teorias conspiratórias, denunciaram a presença de interesses escusos, em especial da fornecedora Nike, forçando o Brasil a “pegar leve” e entregar o resultado para os franceses. Vendo em retrospecto, fica claro que, seja lá qual foi a real causa do problema, a convulsão de Ronaldo já tinha começado muito tempo antes da decisão. Repórteres assediando o craque eram uma constante, e muito se especulava sobre o relacionamento dele com Suzana Werner, sua suposta depressão, seus problemas físicos e sua tendência a esbanjar dinheiro. A pressão sobre um jovem atleta, que rendia milhões e era tratado por todos como a grande figura da Copa, parece ter sido demais para Ronaldo. E, junto com o craque, foi abaixo toda a estrutura emocional e técnica de nossa seleção.

Roberto Carlos não perdoou: para ele, o companheiro de seleção “amarelou mais que a camisa” e sempre se mostrou uma pessoa fechada, que não se abria e não participava das brincadeiras dos companheiros. Júnior Baiano, indignado, disse que a presença de Ronaldo foi um erro médico, e que os atletas não foram consultados a respeito, temendo até que o colega tivesse um ataque fatal em pleno gramado. Edmundo, defendendo-se da explosão contra Rivaldo em pleno jogo, disse que alguns colegas precisavam lembrar que era final de Copa do Mundo. Zagallo, muito cobrado, perdeu a compostura e xingou os repórteres que o interrogavam, saindo intempestivamente da coletiva pós-jogo. Era um final triste para uma campanha que nunca chegou a dar firmeza, mas que e qualquer modo tinha acumulado bons resultados rumo à grande decisão.

Na hora da verdade, tivemos todos que engolir bem mais que Zagallo e suas frases pretensamente espirituosas. Fomos forçados a encarar uma seleção insegura, um vestiário pouco unido e um grande mistério nunca plenamente esclarecido – mesmo que, curiosamente, tenha motivado duas infrutíferas CPIs no Congresso brasileiro. Um pentacampeonato que, apesar dos pesares, parecia quase garantido escapou entre os dedos, em um momento de intenso desequilíbrio emocional de todos os envolvidos. Desequilíbrio que, no fundo, vinha desde o início – e o que começa balançando dificilmente pode acabar bem.

Fotos: Brasil posa para as fotos antes de pegar a Laranja Mecânica (Brazil in the World Cups); Zagallo mata a cobra e mostra a bola (Bracinni.com.br); Rivaldo, um dos grandes nomes brasileiros (SportingHeroes.net); Romário chora as dores do corte (Arquivo/UOL); Dunga e Leonardo em bate-pap0 animado e amistoso (Arquivo/UOL); Flo não perdoa e carimba a classificação brasileira (Getty Images); De Boer perde o pênalti e coloca Brasil na final (Getty Images); Taffarel ensaia passos de dança enquanto Petit prega o caixão brasileiro (Copa 2014); e Ronaldo, já caidaço, despenca de novo no choque com Barthez (Wldcup.com).

Link para a matéria original (blog Carta Na Manga): http://cartanamanga.blogspot.com/2010/06/1998-quem-tem-medo-do-lobo-mau.html

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