1994 - a Era Dunga, parte dois
Brasil tetracampeão contra a Itália. De pé: Taffarel, Jorginho, Aldair, Mauro Silva, Márcio Santos e Branco. Agachados: Mazinho, Romário, Dunga, Bebeto e Zinho.
A história, como todos que leram o artigo anterior devem lembrar, começa muito triste. Jovem rapaz do interior do Rio Grande do Sul consegue crescer na vida graças ao futebol, alcança fama e fortuna na Europa, chega à Seleção, mas acaba envolvido em altas confusões e torna-se vítima de uma grande injustiça. No final do primeiro capítulo, nosso chapa Dunga virou nome de uma Era, da pior forma possível – rotulado como jogador-símbolo de uma seleção sem talento e efetividade, praticamente uma humilhação em forma de time de futebol. E durante quatro longos anos Carlos Caetano Bledorn Verri carregou o pesado fardo de um crime que não cometeu: o assassinato do futebol vistoso, artístico e moleque que se convencionou como imagem arquetípica de nosso esporte mais popular. Ficou em silêncio, remoendo uma culpa que não era sua, aguardando ansiosamente o momento de gritar a sua desforra.
E Carlos Alberto Parreira sabia disso. Treinador experiente, embora sem muitas conquistas no currículo, Parreira contava com a admiração de Ricardo Teixeira, chefão da CBF, e tinha consigo a difícil tarefa de resgatar a moral de uma nação abalada por sucessivos fracassos. Em mais de vinte anos, tínhamos erguido uma única e solitária taça internacional, a Copa América de 1989. Em Copas do Mundo, era um festival de tropeços – com desagradável destaque para a prematura queda em 1990, diante dos rivais argentinos em uma partida que doeu fundo na nossa autoestima. Ser campeão era muito mais do que um desejo ou um sonho – era uma exigência que já estava beirando o desespero. E Parreira a encarou com a seriedade necessária, construindo tijolo após tijolo uma seleção capaz de vencer, sem concessões e a qualquer custo.
Não poderia haver nome mais contestado no Brasil do que Dunga, transformado em tosca imagem da derrota em duas pernas. E justamente por isso, não poderia haver nome mais perfeito para liderar a Seleção dentro do campo, no momento de maior pressão em muitos e muitos anos. Dunga podia não ter a desenvoltura técnica de um Zico ou Falcão, mas era jogador disciplinado, aguerrido e com boa leitura de jogo, além de ser um líder nato dentro das quatro linhas. Era isso que Parreira buscava: um representante dentro do campo, que entendesse taticamente o que estava ocorrendo e fosse capaz de tomar medidas enérgicas para que a nau não ficasse à deriva ao primeiro sinal de mar bravio. Mais do que isso: alguém que tivesse gana de vencer. E ninguém no mundo queria vencer mais aquela Copa nos EUA do que Dunga. Naqueles dias, ele era a imagem do fracasso e da falta de talento para o futebol – mas Dunga não descansaria enquanto não invertesse a escrita e transformasse a sua Era em um símbolo de sucesso e superação. E era isso que Parreira queria, e era isso que nossa Seleção precisava para deixar de sonhar e começar a vencer.
Não que tenha sido muito fácil no início, convenhamos. Citemos como exemplo a Copa América de 1993. O Brasil foi muito mal na competição: jogando com um time consideravelmente diferente do que iria para os EUA, classificou-se na primeira fase com as calças na mão e foi eliminado nas quartas de final pela Argentina, a mesma Argentina que já tinha nos liquidado em 1990 e já se tornava uma desagradável cruz nos caminhos do Brasil. Nessa competição, além da má campanha, tivemos mais um dividendo negativo: a briga entre Parreira e o craque Romário, que por pouco não toma dimensões trágicas para nossa seleção.
Se Dunga era uma peça fundamental para o sucesso de todo um trabalho, o outro pilar de sustentação do time passava necessariamente pelo Baixinho. Craque incontestável, vivendo momento mágico no Barcelona depois de esmerilhar no PSV Eindhoven, Romário era a certeza do toque de genialidade, da criatividade capaz de furar retrancas e abrir caminho para as vitórias. Porém, como todos sabem o Baixinho sempre foi um chapa meio genioso, e um episódio na Copa América criou sério atrito com o treinador. Colocado como reserva nas partidas iniciais da competição, Romário explodiu: se tivessem dito que ele seria reserva, teria ficado na Espanha. Parreira, que sempre prezou pela disciplina hierárquica tanto quanto pela tática, imediatamente reagiu, dizendo que não havia problema, o jogador podia arrumar as malas e voltar para Barcelona no momento que desejasse. Mais ainda: solidário com o drama do Baixinho, Parreira se comprometia a evitar maiores dissabores, garantindo que o nome de Romário não constaria em futuras convocações da Seleção.
Foi uma medida importante em termos de marcar posição, mas que foi muito mal recebida por uma opinião pública que já estava predisposta a bater sem medo na seleção. Durante toda a campanha das Eliminatórias, Parreira manteve a palavra e deixou Romário fora das listas de convocados. Os resultados, porém, não ajudavam – entre eles, uma derrota de 2 a 0 para a Bolívia em La Paz, com direito a falha de Taffarel, primeira vez na história que o Brasil foi vencido em Eliminatórias. A tensão era enorme, e a pressão no sentido de mudar a comissão técnica beirava o insuportável. Para a mídia, a seleção era uma espécie de cópia mimeografada da equipe de 1990 – além de jogar o mesmo futebol sem sal, ainda por cima tinha cheiro forte e podia manchar ainda mais a nossa reputação futebolística. Até porque, cá entre nós, ficar fora da Copa seria uma nódoa enorme na camisa canarinho, daquelas que alvejante nenhum consegue resolver. Ricardo Teixeira, acreditando no potencial de Parreira, bancava a sua permanência. Mas a pressão, capitaneada pela imprensa carioca, era cada vez maior, e ela rapidamente ganhou um nome próprio. Romário, diziam todos, precisava ser convocado. Teixeira prestigiava o treinador, mas não fazia segredo: gostava do futebol do Baixinho. Parreira seguia batendo o pé, embora a cadência fosse cada vez mais descompassada e a intensidade cada vez menos convicta. E o Baixinho, da Espanha, mandava o recado: queria jogar, e se jogasse garantia a vaga na Copa, palavra de craque.
A oportunidade perfeita de conciliar todos os interesses veio no dia 19 de setembro de 1993, contra o Uruguai, em um Maracanã lotado de temerosa expectativa. Mesmo que o simples empate garantisse a Copa, os corações brasileiros eram pura tensão. Todos se lembravam do famigerado Maracanazo de 1950, quando a Celeste Olímpica impôs ao Brasil uma das mais dolorosas chagas de sua história, e temiam um repeteco que poderia ser mais trágico ainda. Ajudado por algumas lesões, e depois de costurar cuidadosamente todas as alternativas, Carlos Alberto Parreira finalmente cedeu. Romário estava na lista para o jogo. E o Baixinho, pela primeira de muitas vezes naquela trajetória, foi gigante. Cumpriu sua promessa com dois gols e uma grande atuação, garantindo a Copa do Mundo para o Brasil – e, obviamente, a sua própria presença na delegação. No vídeo abaixo, além dos gols dessa partida, dá para ver a forçada violenta que a imprensa deu em nome do Baixinho, ao ponto de desprezar cruelmente o trabalho de todos os outros envolvidos em nome do endeusamento de Romário.
A classificação era obviamente um alívio, mas trazia um problema sério escondido dentro de si. Apesar do oba-oba, tinha ficado claro que o Brasil não podia prescindir do craque – ainda mais num momento em que o setor de criação deixava muito a desejar. Raí, herói do bicampeonato mundial do São Paulo, vinha em queda, com uma temporada pouco empolgante no Paris St. Germain; Zinho, o outro meia-armador, era contestado por carregar demais a bola, ao ponto de ganhar da imprensa o pouco elogioso apelido de “enceradeira”. Romário era um lampejo criativo, capaz de resolver uma partida em instantes – mas era também uma bomba relógio com grande cartaz na imprensa, que podia colocar tudo a perder com uma única frase ou atitude impensada. Como controlar o gênio do Baixinho? Parreira e seu auxiliar Zagallo pensavam, pensavam e não achavam solução. Até olharem para o lado e enxergarem Dunga – o sério, voluntarioso, dedicado jogador que carregava pianos sem reclamar. E então ouviram o clique, o sonzinho da ficha caindo ao chão, a trombeta que anuncia as decisões capazes de salvar uma campanha. Colocaram Dunga e Romário no mesmo quarto de hotel, na concentração – e essa tacada de mestre fez maravilhas em favor de todos os envolvidos. Como, aliás, os próprios ex-jogadores confirmaram sem reservas em entrevistas posteriores.
A grande estreia da seleção de Parreira, Dunga e Romário ocorreu no dia 20 de junho de 1994, no Stanford Stadium, de San Francisco. Ricardo Gomes, um dos zagueiros titulares, sofreu distensão muscular durante os treinamentos pré-Copa e foi substituído por Márcio Santos. Romário, que também tinha sofrido uma lesão muscular, conseguiu recuperar-se a tempo e pôde jogar na partida inaugural. O time que entrou em campo para encarar a Rússia foi escalado com Taffarel; Jorginho, Márcio Santos, Ricardo Rocha e Leonardo; Dunga, Mauro Silva, Zinho e Raí; Bebeto e Romário.
A partida inaugural pode não ter sido primorosa, mas indicou claramente que o trabalho realizado estava apontando em uma direção positiva. Ciente das deficiências que o plantel tinha do meio para frente (potencializadas por alguns equívocos na convocação final, como a presença pouco útil do discreto Paulo Sérgio), a comissão técnica optou por fortalecer bastante o time atrás, criando uma muralha que garantisse a utilidade de cada gol conquistado. O entrosamento entre Dunga e Romário, muito além da mera camaradagem de concentração, começou a ganhar visibilidade dentro de campo, com os passes do Anão encontrando os pés do Baixinho com frequência. Bebeto, companheiro de Romário no ataque, tinha menos cartaz, mas vivia grande momento técnico e entrosou-se rapidamente com seu colega de frente. Jorginho e Leonardo, laterais de alta qualidade, garantiam um municiamento qualificado para os homens de frente. Não era um futebol majestoso, mas longe estava de ser a tragédia que muitos preconizavam antes da estreia – e que outros tantos, cheios de ranço, seguiram pregando Copa adentro, e se bobear seguem professando até hoje. O resultado foi justo e categórico: 2 a 0, gols de Romário e Raí (pênalti), em uma partida disputada, mas na qual só um dos times poderia mesmo ter vencido.
Depois de superar com segurança o selecionado russo, os brasileiros encarariam a equipe de Camarões, talvez a maior sensação da Copa de 1990 na Itália. Não era mais o mesmo time, porém, e os “Leões Indomáveis” tinham perdido muito de sua força, como esse texto de nosso mestre Vicente Fonseca ajuda a esclarecer. Foi mais uma vitória, e desta vez com um desenvolvimento bem mais tranquilo: 3 a 0, em uma atuação bastante eficiente de defesa e atacantes. Com a nova vitória, e combinado a resultados paralelos, o Brasil garantia antecipadamente a classificação.
Com a vaga garantida, a equipe canarinho acabou naturalmente relaxando para o terceiro jogo contra a Suécia – que não era, aliás, um time meia-boca qualquer, como veremos logo adiante. A grande vantagem do jogo, se é que havia alguma, era escolher o adversário nas oitavas de final – se vencesse ou empatasse, a tendência era encarar os anfitriões estadunidenses; se perdesse, viria a sempre perigosa seleção da Holanda. O Brasil começou frouxo, meio sem ímpeto, e logo sofreria seu primeiro gol na Copa, cortesia de Kennet Andersson. Mas reagimos, graças a uma bucha de Romário, e a verdade é que o 1 a 1 final poderia sim ter sido uma vitória brasileira, apesar dos suecos terem mostrado que de bobos não tinham nada. Aldair, substituindo Ricardo Rocha pelo segundo jogo consecutivo, consolidou de vez uma defesa já bastante sólida – mas, mesmo com esse desempenho, as críticas ainda existiam, e a comissão técnica ainda tinha um problema sério com o setor de armação no meio de campo.
Apesar da boa campanha, tanto Zinho quanto Raí deixavam muito a desejar. Em especial o segundo, que não conseguia ser nem sombra do jogador assombroso que comandou o São Paulo no período mais triunfante de sua história. Olhando para o banco, Parreira e Zagallo viam poucas opções. Durante o jogo com a Suécia, Mazinho foi a campo no lugar de Zinho, e acabou dando um pouco mais de consistência ao setor. Embora fosse também um jogador de cacoete defensivo, o atleta do Palmeiras tinha um bom controle de bola, e parecia ser uma opção melhor do que a insistência numa dupla que rendia cada vez menos a cada jogo. Claro que as vozes em defesa do futebol arte ergueram-se indignadas contra a medida “retranqueira” de Parreira – mas, como a campanha posterior demonstraria, a entrada de Mazinho no lugar de Raí acabou sendo mesmo a melhor opção, dentro das circunstâncias. Não era o ideal, mas ao menos o meio de campo passou a contribuir mais na criação de jogadas, o que já era um grande progresso.
Contra os EUA, vivemos momentos de grande dramaticidade. Feriado de 04 de julho, Stanford Stadium lotado com mais de 80 mil torcedores empolgados e acreditando numa classificação heróica. Cientes de que, dentro de campo, eram muito inferiores aos brasileiros, os atletas dos EUA apostaram num esquema bastante defensivo, expondo a defesa o mínimo possível na busca de um gol espírita ou da classificação nos pênaltis. Para os estadunidenses, vencer o Brasil teria sabor de título; e o Brasil, carente na criação e preparado antes de tudo para se defender bem, teve grandes dificuldades para achar o seu espaço. Apáticos, os laterais não conseguiam servir os atacantes, que estavam eles mesmos em jornadas abaixo da média. Foi um jogo longo, disputado sobre forte calor, que por pouco não acaba tendo a tentativa de assassinato cometida por Leonardo contra Tab Ramos como ponto máximo de emoção. Foi quando Romário resolveu dar um jeito naquela história: arrancada forte, na qual o Baixinho passa voando por quatro marcadores e encontra Bebeto, livre para marcar o gol salvador. Muita fumaceira, sem dúvida – mas era o 1 a 0 necessário, suficiente para garantir o Brasil nas quartas de final.
A expulsão de Leonardo, ampliada para uma punição de quatro jogos que o excluía da Copa, criava um novo problema para a escalação de nossa seleção. Branco, o reserva lógico na lateral esquerda, vinha sofrendo sérias dores lombares, e sua falta de condição física poderia criar sérios problemas contra a forte seleção holandesa, repleta de craques como Rijkaard, Bergkamp, Koeman e Overmars. Era uma partida dificílima, e muita crítica caiu sobre Parreira pela falta de boas opções do elenco, com Branco sendo rotulado como um jogador incapaz de disputar Copa do Mundo.
O jogo em si, disputado no Cotton Bowl de Dallas no dia 09 de julho, consta no site oficial da FIFA como uma das melhores partidas de Copa do Mundo de todos os tempos. O Brasil, contrariando todos os prognósticos, fez um jogaço. Atuação sólida, consistente, jogadores concentrados e dando tudo de si contra uma Holanda movediça e sempre perigosa com a bola no pé. O Brasil fez 2 a 0, dando um show de futebol; a Holanda empatou em 2 a 2, devolvendo o placar com uma reação espetacular. E a decisão do jogo veio do jogador mais adequado: Branco, contestado antes do jogo, cavou uma falta e fez um golaço espetacular de falta, com direito a Romário dando um drible de corpo na própria bola de jogo, um das imagens antológicas de todas as Copas. O “gol cala a boca”, como batizou o próprio autor do tento, dando um testemunho da revolta contra a pressão da imprensa. Um combustível não apenas para Branco, mas também para toda aquela delegação. Poderíamos passar semanas descrevendo esse jogo impressionante – mas basta uma olhada mais detida nesse vídeo para ver todos os grandes lances do cotejo. E entender que, tendo vencido semelhante adversário, o Brasil não tinha mais que provar nada para ninguém: virava sim, e com autoridade, um dos favoritos à conquista do título.
A essa altura, o clima no Brasil era surreal. Por um lado, empolgação com a proximidade do tetra tão almejado; por outro, um ranço estranho e incompreensível, que condenava o futebol “feio” dos brasileiros e – absurdo dos absurdos – dizia preferir derrotas bonitas como 1982 a ter a chance de vencer jogando feio e sem respeitar o verdadeiro espírito de nosso futebol. Com todo o respeito, uma bobagem gigantesca – e não só porque o Brasil de Parreira longe estava de ser essa tragédia que pintavam, mas também porque havia uma pressão imensa por títulos, que precisava ser superada a todo custo. O negócio era levantar uma taça, acabar de vez com esse bloqueio, do jeito que tivesse que ser. E o Brasil estava nessa direção, sem dúvida alguma.
Coisa que se consolidou de vez com uma nova partida contra a Suécia, desta vez na disputa de uma vaga para a grande final. Foi mais uma partida muito difícil, com os suecos sempre atrás e o Brasil lutando do jeito que dava para abrir espaços rumo ao gol. A entrada de Raí no lugar de Mazinho melhorou o time, a expulsão de Thein fez com que a Suécia ficasse ainda mais frágil, mas a coisa não mudava muito de figura. Jogo muito truncado, amarrado, com poucas situações claras de gol – e resolvido por Romário, desafiando não só a marcação sueca, como também a própria lógica. Em cruzamento de Jorginho, o Baixinho achou espaço entre os gigantescos zagueiros da Suécia e cabeceou, certeiro e mortal, sem chances para o bom (e nada discreto) goleiro Ravelli. Brasil, de forma pragmática e determinada, tinha chegado na final da Copa, pela primeira vez desde 1970. Com Dunga, Parreira e três “volantes” no meio, para dar um nó cego na mente de todos os críticos.
E não era só a sensação de estar de volta à decisão que remetia à conquista de 1970. O adversário seria o mesmo: a Itália, que havíamos superado no México, mas que em troca tinha nos eliminado em 1982, naquela que é até hoje uma das maiores tristezas de nosso futebol. Uma Itália, sejamos sinceros, meio carente de brilhantismo naquele momento. A Azzurra vinha muito desfalcada: Costacurta lesionado, Tassotti suspenso, os craques Baresi e Baggio descontados. O Brasil vinha inteiro, confiante, acreditando no título, mas sem nenhum tipo de salto alto. Uma equipe tão contestada não teria mesmo nenhum espaço para qualquer tipo de pretensão. Dunga, capitão e líder, cobrou seus companheiros com dureza: aquele era o jogo da vida de todos eles. E mais ainda para ele, sem dúvida – afinal, era a chance derradeira de corrigir o rumo da própria História.
Revendo o jogo decisivo, disputado no Rose Bowl de Los Angeles no dia 17 de junho, é possível endossar a escolha do Destino: o Brasil, de fato, mereceu bem mais aquela vitória. Jogou com vontade, com aplicação e com coração, valorizando a posse de bola e sendo agudo sempre que a chance permitia. Romário, porém, não fez a melhor partida de sua carreira, e suas participações não trouxeram muito perigo ao gol de Pagliuca. Fragilizados, os italianos contentavam-se em dificultar o andamento do jogo, apostando pouco em lances de ousadia, encarando o empate como um resultado bastante razoável. Para os brasileiros, o temor ia crescendo – afinal, disputar pênaltis nunca foi nossa especialidade, como a França de 1986 teria o maior prazer de confirmar. Numa medida que denuncia o desespero dos notórios defensivistas Parreira e Zagallo, Zinho foi sacado para a entrada de Viola, transformando o “retranqueiro” Brasil num inesperado 4-3-3. Sem resultado: apesar das muitas chances, disponíveis no vídeo logo abaixo, o placar arrastou-se sem gols até o final da prorrogação.
Os pênaltis, em toda a sua carga de extrema dramaticidade, fizeram justiça aos nomes mais heróicos daquela seleção toda banhada em heroísmo. Baresi começou as cobranças, isolando a bola muito longe do gol de Taffarel. Márcio Santos também errou, Albertini abriu o placar para os italianos, e Romário fez uma cobrança que chegou a dar medo, mas acabou entrando e mantendo a igualdade. Evani guardou para os italianos, e o contestado e descontado Branco cobrou com firmeza, fazendo o 2 a 2. Massaro bate mal, e Taffarel defende. E então Dunga, o homem que batiza uma Era, tinha a chance de colocar o Brasil em vantagem na decisão de pênaltis mais importante de todas as nossas vidas. Imagino que muitos de seus críticos tenham tremido nas bases – afinal, se o homem-símbolo faz o gol, seus argumentos pró-beleza e anti-brucutus perderiam muito da força. Para Dunga, aquele era o momento máximo, o que define toda uma vida. Quatro anos de longa e dramática espera encontravam naquele momento o seu inevitável desfecho. E o Anão foi gigante, uma vez mais: cobrou muito bem, firme, colocando o Brasil na frente. A sua comemoração até hoje me arrepia, muito mais que os gritos que daria logo depois, erguendo a taça como quem joga seu triunfo na cara de todos os críticos. Ali sim, naquele momento histórico, uma das mais belas histórias de todas as Copas chegava a seu final feliz. O erro de Baggio, decisivo para confirmar o justíssimo título brasileiro, era apenas consequência na verdadeira grande história daquela decisão.
Foi um título de desafogo, em muitos sentidos. Para Parreira, o treinador contestado, que encheu a boca para dar uma de Frank Sinatra e dizer que tinha feito as coisas do seu jeito, e tinha sido vitorioso. Para Romário, que conseguiu manter os impulsos sob controle durante toda uma competição e justificado, dentro de campo, o status de estrela que ostentava fora dele. Para uma geração de atletas, rotulada como fraca e insuficiente e que encontrava no título mundial a mais incontestável das afirmações. Para o povo brasileiro, que viveu uma verdadeira montanha russa emocional, e que foi às ruas comemorar a conquista aguardada há mais de duas décadas. E para Dunga, o grande crucificado em 1990, que tinha revertido seu próprio nome de xingamento a sinônimo de sucesso. Carlos Caetano Bledorn Verri gritou “é nossa, porra” quando ergueu a taça, veias do pescoço saltando, rosto crispado em uma careta de puro desabafo e emoção. Mas acho que, lá no fundo, ele dizia outra coisa. Para os meus ouvidos, desde então e até hoje em dia, ele grita que essa sim era sua Era. A Era dos que vencem a descrença de todos e vão galgando degraus rumo aos objetivos. A Era dos que não dão show, mas levam taças para casa. A Era dos vitoriosos. A Era Dunga.
Assim, amigos/as, encerra-se a segunda parte da grande saga de Dunga. A trilogia será concluída daqui a pouco menos de dois meses, quando for encerrada a Copa da África do Sul 2010. Dunga, agora treinador, volta a uma posição familiar: contestado, cercado de descrença, vendo seu nome ser associado a feiúra e a um futebol que não pertence ao nosso espírito moleque e artístico. Mais uma vez, Carlos Caetano Bledorn Verri poderá mostrar a todos como se faz as coisas. Pessoalmente, torço por ele – será bom poder encerrar a história com um final feliz.
Fotos: A face vitoriosa da Era Dunga (Arquivo/Folha Imagem); uma capa de Veja que a gente pode respeitar (Site do Roberto Secio); o homem das uvas e o lobo bonzinho (Arquivo/Folha Imagem); Romário esnobando Alexi Lalas no jogo contra os EUA (Arquivo/UOL); Zinho trata a bola com carinho contra os suecos (Getty Images); Baggio baixa a cabeça ao som da festa do tetra (Diário de Pernambuco); e Dunga anuncia aos gritos o verdadeiro começo de sua Era (Masao.Wordpress.com).
Link para a matéria original (blog Carta Na Manga): http://cartanamanga.blogspot.com/2010/05/1994-era-dunga-parte-2.html