1974 - no meio do caminho tinha uma laranja


Brasil na estreia contra a Iugoslávia. Em pé: Nelinho, Leão, Luiz Pereira, Marinho Chagas, Marinho Peres, Piazza e Admildo Chirol (preparador físico). Agachados: Mário Américo (massagista), Valdomiro, Leivinha, Jairzinho, Rivelino, Paulo César Caju e Nocaute Jack (massagista).

Sabe aquela festa incrível, na qual a gente vai sem maiores pretensões, mais para marcar presença mesmo, e no fim das contas tudo dá muitíssimo certo? Tudo flui bem, a gente se sente à vontade, tomamos conta da pista de dança, vamos embora com aquela pessoa especial e acordamos no outro dia já no final da tarde, com uma dor de cabeça terrível, gosto de guarda-chuva na boca, mas com um sorriso nos lábios e dizendo “obrigado, Senhor”? Pois é. Para a nossa seleção, a Copa de 1970 foi mais ou menos isso aí; uma festa que prometia ser meia-boca, mas que acabou virando um evento lendário e inesquecível. Mas, do mesmo jeito que tem noites que rendem muito além do esperado, temos também aqueles eventos que prometem tudo e vão por água abaixo. A gente sai de casa sem colocar perfume, pega ônibus errado, pisa na poça d’água e molha o sapato novo, e quando finalmente chegamos ao lugar da festa, achando que agora vai, aí sim que a coisa degringola de vez. Eu diria que 1974 foi bem isso aí: uma festa daquelas que o rapaz ou a moça confia que vai render muito, e no final das contas a gente volta para casa chutando lata de Coca-Cola pela rua.

Após uma conquista singular como o Tricampeonato no México, era mais do que compreensível alguma dificuldade em lidar com a situação. Ao contrário do que se deu quando do primeiro título brasileiro em 1958 – quando o Brasil manteve a mesma base e faturou novamente a taça quatro anos depois – nossa comissão técnica optou por uma renovação, acreditando estar aí a fórmula para o tetra. Não que a renovação seja um problema em si, muito pelo contrário; mas sabemos que um processo do tipo requer tempo, cuidado e especialmente critérios para que seja levado a cabo da melhor maneira. E isso, sem dúvida, faltou e muito nos quatro anos posteriores ao grande triunfo no México.

A base de 1970 foi, em termos gerais, desmontada. Pelé foi um dos primeiros a partir, decidindo que não mais atuaria oficialmente pela seleção brasileira. Depois de momentos tensos, quando teve que ouvir o então treinador João Saldanha chamá-lo de míope e chegou a ser cotado para o banco de reservas, o craque foi o grande nome da Copa do México e não tinha mais interesse em expor-se a certas cobranças. No dia 18 de junho de 1971, Pelé fez sua despedida da seleção brasileira, em um 2 a 2 contra a Iugoslávia em um Maracanã com quase 140 mil pessoas. Junto com o Rei, outros nomes marcantes ficariam de fora das convocações – entre outros, craques como Tostão, Carlos Alberto Torres, Clodoaldo e Gérson. Ou seja, a equipe que tinha encantado o mundo viu-se subitamente sem a sua espinha dorsal. E, como logo se comprovaria, o treinador Zagallo não tinha o equilíbrio técnico e tático necessário para pegar esse limão e, pela segunda vez consecutiva, transformá-lo em gostosa limonada – ou laranjada, para apelarmos para um trocadilho fácil...

Lembremos: na Copa do Mundo anterior, Zagallo tinha sofrido pressões para escalar um time recheado de craques, depois de uma série de jogos pouco animadores nos quais optou por uma escalação mais resguardada defensivamente. Na base da conversa, e usando de considerável jogo de cintura, conseguiu montar uma equipe meio difícil de descrever taticamente, mas muitíssimo efetiva em todos os setores. Foi uma engenharia brilhante, sem dúvida, mas que foi ajudada em sua eficiência pelo talento e qualidade incontestáveis dos jogadores à disposição. Em 1974, a situação estava um pouco diferente, e o Lobo acabou tendo mais, digamos, liberdade para aplicar sua formatação ideal de time. Pensou o time de trás para frente, buscando um esquema sólido e que sofresse poucos riscos defensivos. Sejamos honestos, até que o homem conseguiu – mas não obteve com isso os resultados mais desejáveis, digamos assim.

Embora desfalcada de muitos grandes nomes da Copa anterior, ninguém em sã consciência diria que aquela era uma seleção meia-boca. Entre outros, contava com o goleiro Leão, o lateral direito Nelinho, os zagueiros Luís Pereira e Marinho Peres, o meio-campista Paulo César Carpegiani e o atacante Valdomiro, todos eles nomes destacados no futebol brasileiro daquele período. Além disso, atletas da delegação de 1970 se mantinham, como Piazza (em sua posição original como volante), Rivelino, Jairzinho e Paulo Cesar Caju. Havia, portanto, um considerável equilíbrio entre experiência e renovação, não sendo esse o problema de nossa seleção. O negócio, na verdade, era um só: a geração que disputaria a Copa da Alemanha não tinha, nem de longe, o mesmo nível da de quatro anos antes – embora tivesse sobre si uma pressão equivalente, se não ainda maior. A delegação imensa, com um número de assistentes e convidados ainda maior do que de profissionais, aumentava o clima de expectativa, além de contribuir negativamente para a desconcentração dos jogadores. Os amistosos pré-Copa também não animavam muito – empates magros contra seleções como Grécia e Áustria, vitórias raquíticas sobre um combinado do sudoeste alemão e um constrangedor empate em 1 a 1 com o desmilinguido Racing Pierrots da França (então garboso disputante da segunda divisão local) davam um panorama bem preocupante quanto ao que nos esperava na Copa da Alemanha. Mas Zagallo, sempre otimista, desfiava sem medo seu desconhecimento do futebol europeu: para ele, tudo estava sobre controle, o time estava cheio de confiança e pronto para encantar o mundo uma vez mais. E fomos levando as coisas com a barriga até a estreia, no dia 13 de junho de 1974, enfrentando a Iugoslávia no Waldstadion de Frankfurt.

A bem da verdade, foi uma abertura de Copa das mais melancólicas. O Brasil foi a campo com Leão; Nelinho, Luís Pereira, Marinho Peres e Marinho Chagas; Piazza, Rivelino e Paulo Cesar Caju; Jairzinho, Valdomiro e Leivinha. Apesar do discurso otimista e conciliador, o treinador escalou uma equipe inédita em toda a preparação, que nunca tinha jogado junta até aquele momento – o que, além de sinalizar que nosso Lobo não era cego, acabava expondo também a insegurança da comissão técnica com o trabalho realizado até aquele momento. O jogo em si foi de um tédio quase absoluto: chances escassas de lado a lado, duas equipes preocupadas em não levar gol e esperando uma brecha para tentarem algo mais. O contraste era brutal. Depois de encantar o mundo com um futebol que atacava muito até para encaixotar o adversário e não expor suas próprias fragilidades defensivas, tínhamos um Brasil sólido atrás, mas pouco criativo e incapaz de pressionar uma Iugoslávia qualificada até, mas longe de ser um time capaz de pleitear título mundial. Leão, pasmem, chegou a ser um dos destaques da estreia brasileira. Partida tão medíocre só poderia terminar como terminou: um zero a zero insosso, em uma chochíssima abertura de Copa que deixou a torcida decepcionada. Mas alegrou Zagallo, que elogiou a equipe e defendeu o resultado pela sua importância na tabela. Como uma das equipes do grupo era o fragilíssimo Zaire, a soma de um ponto contra o adversário mais qualificado do grupo era tratado por nossa comissão técnica como uma boa notícia.

Raciocínio prático, ponderado, mas muito pouco ambicioso – e que se manteve no segundo jogo do grupo, em outro empate sem gols e sem nenhuma emoção especial. Contra a Escócia, o Brasil jogou ainda menos que na estreia – méritos da humilde, mas corajosa seleção escocesa, que encarou o escrete canarinho de frente e chegou a impor inesperadas dificuldades para nosso time. O time brasileiro apresentou mudanças em relação ao da primeira partida, com a entrada de Mirandinha no lugar de Valdomiro, mas a mudança acabou não produzindo resultado prático algum. Em um jogo duro, por vezes até um pouco violento, nossa seleção preferiu resguardar-se atrás, pensando em termos práticos e tratando um novo empate como uma conquista, e não como uma renúncia do jogo. Em 180mins de futebol, o Brasil não colocou uma única bola na rede – dado preocupante em uma escola futebolística marcada pela grande quantidade de gols marcados. A classificação em si não corria riscos – como a própria Escócia tinha vencido o Zaire por dois gols de diferença, bastaria ao Brasil vencer os africanos por três gols ou mais para garantir a vaga. Tarefa relativamente simples, considerando o baixíssimo nível do adversário – mas de qualquer modo uma situação constrangedora para um país acostumado a disputar títulos com brilhantismo e sem olhar para as nuances da tabela.

Apenas uma vitória acachapante sobre os africanos – tipo a que a Iugoslávia obteve, aplicando 9 a 0 no pobre Zaire – poderia dissipar um pouco a aura desagradável que se espalhava como um miasma pelo ambiente da delegação brasileira. Não foi bem o caso: o Brasil até fez os 3 a 0 regulamentares que precisava e garantiu, sem qualquer brilhantismo, a vaga na fase semifinal, mas em uma atuação muito pobre e sem qualquer tipo de brilhantismo ou mesmo destaque individual. Os gols brasileiros foram marcados por Jairzinho, Rivelino e Valdomiro, os dois últimos já na segunda metade do segundo tempo, na base do sufoco. Pode parecer que não é tão ruim assim vencer com folga uma seleção que disputa Copa do Mundo – mas sugiro ao leitor/a dar uma olhadinha no vídeo logo abaixo, que registra uma cobrança de falta a favor do Brasil, para ter noção não apenas do baixo nível técnico, mas da impressionante ingenuidade de nossos adversários naquele jogo:



Com seu desempenho, o Brasil garantiu-se como segundo colocado no Grupo 2 – eficiente, sem dúvida, mas uma campanha marcada pela absoluta mediocridade, no sentido mais literal possível da palavra. Essa nada brilhante seleção foi parar no Grupo A da fase semifinal, tendo que encarar a modesta Alemanha Oriental, a sempre tinhosa Argentina e o assustador Carrossel Holandês, a Laranja Mecânica que enchia o mundo de assombro com seu futebol total. Zagallo, mantendo a serenidade típica dos que vislumbram o naufrágio e preferem não apavorar a tripulação, seguia tranquilo, afirmando que a primeira fase já tinha acabado e que a partir dali o Brasil ia mostrar o futebol que tanto encantava o mundo.

Não foi exatamente o que se viu na partida contra a Alemanha Oriental, disputada no dia 26 de junho no Niedersachsenstadion de Hannover, mas enfim. Foi um novo placar pragmático e sem brilhantismo – vitória magra de 1 a 0, conquistada em um gol de falta de Rivelino. Além do mais, Zagallo promoveu uma mudança tática na equipe – tornando-a, para a surpresa dos que acham que o Lobo gosta de time ofensivo, um time ainda mais resguardado e cauteloso. Leivinha foi para o banco, substituído por Dirceu, um jogador bem mais recuado e que transformava o 4-3-3 original em um 4-4-2 quando o adversário tomava a iniciativa do jogo. A defesa manteve-se inexpugnável, e o ataque perdeu ainda mais criatividade. Mas a vitória legitimava a mudança, e supostamente fazia do Brasil um time mais coeso e equilibrado, mesmo que se contentando com um placar magro contra uma seleção que apenas estreava em Copas do Mundo. De qualquer modo, a bucha de Rivelino é impressionante, como se pode ver no vídeo abaixo.



Contra a Argentina, o Brasil fez o que talvez tenha sido seu melhor jogo na Copa da Alemanha. Pela primeira vez, o time entrou em campo de corpo e alma, disposto a lutar por uma vitória, sem ficar olhando para a tabela a cada passe ou cobrança de tiro de meta. Afinal, contra a Argentina não se joga com regulamento debaixo do braço, e o empate é no mínimo indesejável contra os ‘hermanos’. Foi uma partida que longe esteve de encher os olhos, mas com duas equipes cheias de gana e vontade de jogar futebol – até porque os argentinos tinham tomado 4 a 0 da Holanda e precisavam da vitória para seguirem vivos na competição. A seleção canarinho saiu ganhando, gol de Rivelino (sem dúvida nosso melhor jogador naquela Copa), mas Brindisi cobrou falta com perfeição e empatou o jogo menos de três minutos depois. Jairzinho desempatou no começo da segunda etapa, e a partir daí foi uma tensa disputa lance a lance, eletrizante confronto que encerrou com a suada – e, desta vez, muito digna – vitória do Brasil. Os melhores lances desse belo jogo seguem abaixo.



A partida contra a Holanda tinha caráter decisivo – afinal, eram as duas equipes que tinham vencido seus jogos até ali, e quem vencesse estaria garantida na final. Nosso treinador, animado com as mudanças e com o bom jogo contra a Argentina, encheu-se de confiança, e na tentativa de empolgar seus comandados acabou escorregando em perigosa e desnecessária verborragia. Não só reafirmou sua confiança na seleção brasileira, como explicitou sem reservas seu pouco caso com o adversário do dia 03 de julho. Segundo o Lobo, a Holanda era muito “tico-tico-no-fubá”, comparou o Carrossel com o América carioca dos anos 50, disse que a Laranja ia “virar suco” e arrematou: “eles (holandeses) não têm tradição em Copas, e por isso não me preocupam. Estou pensando na final contra a Alemanha”. Sim, concordo com vocês: Mário Jorge Lobo Zagallo é mesmo um mestre em estratégia...

Pior que subir no salto agulha, só mesmo fazê-lo sem ter condições técnicas para tal – e a lição foi aprendida da forma mais dura: uma derrota dolorosa, um 2 a 0 incontestável e a perda da vaga para a grande final. No primeiro tempo, um empate com sabor de derrota: o Brasil foi superior, Jairzinho e Paulo Cesar Caju perderam gols feitos e poderíamos perfeitamente ter ido para o intervalo com a vitória parcial. No segundo tempo, porém, a Laranja reencontrou o futebol do restante da competição, marcou gols por meio de Neeskens e Cruyff e conquistou a justa vitória de quem foi amplamente superior na hora decisiva. No fim do jogo, a chave de chumbo: Luis Pereira, fora de si, partiu para o Ultimate Fighting contra Neeskens e acabou expulso. Além da Copa, o Brasil perdia a cabeça – e Zagallo, ainda que tenha tentado manter a pose, forçado a dar dolorosas dentadas na própria língua.



Nem mesmo uma despedida digna foi concedida àquela mediana seleção brasileira. Embora fora da decisão, o Brasil tinha a chance de conquistar um terceiro lugar contra a Polônia – mas, com a arrogância que infelizmente caracteriza muitos momentos de nosso futebol, entrou em campo com absoluto desinteresse e acabou perdendo por 1 a 0, gol de Grzegorz Lato aos 31mins do segundo tempo. E foi assim, medíocre e melancólica, que se encerrou a campanha brasileira em 1974. Mais do que futebol, faltou equilíbrio, consistência tática, concentração e, acima de tudo, seriedade à nossa seleção. Não foi à toa que a France Football rotulou nossa campanha como “a maior decepção” de 1974. Convenhamos, foi constrangedor. João Havelange, na época recém eleito e empossado presidente da FIFA, não deve ter gostado muito desse presente de boas-vindas...


Fotos: Brasil perfilado para um glorioso empate (Mochileiro.tur); o Lobo, em pose de estadista (Arquivo - Folha Imagem); Rivelino, o melhor de uma seleção que não foi das melhores (Arquivo - UOL); Rivelino fuzila sem medo contra a Alemanha Oriental (Arquivo - Folha Imagem); e Luis Pereira, com pressa de ir para o chuveiro contra a Holanda (Copa 2014).

Link para a matéria original (blog Carta Na Manga): http://cartanamanga.blogspot.com/2010/04/1978-no-meio-do-caminho-tinha-uma.html

Unknown  – (30 de março de 2019 às 06:22)  

O que ocorreu com a seleção em 1974 viria a ocorrer em 2006, e com coincidências: Em ambos os anos a Copa foi disputada na Alemanha e nas respectivas edições anteriores o Brasil tinha levado o título (1970 e 2002).

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